“Vou-te matar e depois vou para um T0 onde não pago renda”

Anabela Pereira já tinha sido vítima de um terrível erro médico. Foi também a 21.ª vítima de violência doméstica de 2015. Ex-marido começa a ser julgado na terça-feira.

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Anabela Pereira foi morta pelo companheiro a 6 de Agosto de 2015 DR

O casal chegou a aparecer em programas de televisão, depois de um erro médico ter roubado uma perna a Anabela Pereira, uma ajudante de lar que havia de morrer aos 43 anos. Entrou no Hospital Garcia d’Orta para ser operada às varizes e saiu amputada, por os médicos terem confundido uma artéria com uma veia.

Nessa altura, em 2012, já se teriam registado alguns episódios de violência doméstica. E outros iriam ainda ter lugar, após Anabela Pereira receber do hospital uma avultada indemnização que lhe permitiu mudar-se com Augusto Borges e os dois filhos do casal de uma casa arrendada na zona do Feijó para uma vivenda com piscina na Charneca da Caparica, no concelho de Almada.

“Pões-me fora de casa e eu mato-te. Parto-te os carros todos e a casa também. Vou-te matar e depois vou para um T0 onde não pago renda”, disse-lhe um dia o marido, segurança de profissão. A frase consta da acusação de homicídio de que agora é alvo, e que de resto confessou às autoridades. Nesse dia faltavam três anos para o trágico crime.

Não terão sido apenas os episódios de violência doméstica a ditar o divórcio que se deu após a chegada da indemnização, mas também questões de índole financeira. Despedida do lar por ter ficado incapaz para o pesado serviço, apesar das próteses que o hospital lhe providenciara, Anabela Pereira, que era casada no regime de comunhão de bens adquiridos, não queria ter por herdeiros dois filhos que o marido tinha de um anterior casamento. O segurança continuou, porém, a morar com ela.

A 21.ª vítima

Segundo o advogado da família da vítima, Gameiro Fernandes, tinha deixado o emprego e recusava-se a abandonar a casa. Acabou por se ir embora tempos depois, a troco de dinheiro e de um carro, continuando a visitar a ex-mulher e os filhos. A acusação diz que os almoços e jantares não tinham sido momentos felizes neste casamento de década e meia: sempre que a refeição não era do seu agrado, o segurança “travava discussão e atirava louça pelo ar”.

A 25 de Novembro de 2014, menos de nove meses antes do homicídio, as coisas voltaram a azedar. Anabela Pereira queixa-se à GNR de que o antigo companheiro foi lá a casa e lhe espetou um garfo no braço direito depois de a ter insultado. O episódio deu origem a uma acção judicial, mas não é claro o que realmente sucedeu. A namorada de um dos filhos descreveu às autoridades insultos de parte a parte, enquanto uma irmã da vítima contou que ela lhe tinha confidenciado ser sua intenção automutilar-se com uma faca para depois poder apresentar queixa contra o ex-marido. Na esquadra da PSP de Corroios, a ajudante de lar entrega nesse dia duas armas que pertenciam ao ex-marido, uma de ar comprimido e outra de alarme.

De acordo com o inquérito de avaliação de risco a que é submetida pelas autoridades, o agressor revela um elevado grau de perigosidade. Não lhe foi, porém, aplicada pulseira electrónica para evitar a sua aproximação da antiga companheira — que acaba por pedir a suspensão provisória do processo, o que implica com grande probabilidade o seu arquivamento, a troco da saída do ex-marido de casa. Fá-lo mês e meio antes de ser assassinada.

No dia fatídico, 6 de Agosto de 2015, Augusto Borges passa lá por casa de manhã para recolher os seus últimos pertences. Anabela resolveu vender a moradia, que lhe dá demasiadas despesas, e nessa tarde vai assinar o contrato-promessa de compra e venda. O Ministério Público explica sucintamente o que se passou: “Após travar discussão com ela, o ex-marido seguiu-a até à lavandaria e apertou-lhe o pescoço com força, sufocando-a, o que logrou fazer, apesar de a vítima ter procurado resistir.” Os filhos do casal, de 15 e 21 anos, “encontravam-se a dormir”. Gameiro Fernandes diz que o diário da sua cliente desapareceu do cofre onde ela o guardava.

“Arrependidíssimo e devastado”

Anabela Pereira foi a 21.ª vítima feminina de violência doméstica no ano de 2015. Até ao final do ano outras oito mulheres haviam de morrer às mãos de companheiros e ex-companheiros — que se, nuns casos, também as asfixiaram, noutros usaram armas brancas e armas de fogo. Laura Ribeiro, por exemplo, uma mulher de Valongo, foi morta pelo ex-marido com um barrote de madeira meses depois. O homicida, que vigiava a vítima e lhe fazia esperas, confessou aos amigos que tinha ciúmes.

Já este ano, e até ao final do mês passado, o observatório de mulheres assassinadas da UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta contabilizou nove destes homicídios conjugais.

Preso preventivamente desde que tudo aconteceu, Augusto Borges antecipa uma pena longa. Começa a ser julgado esta terça-feira em Almada e, segundo o seu advogado, Tito Januário, está “arrependidíssimo, emocionalmente devastado”: “Diz que deu cabo da vida dos filhos, que têm um pai preso e uma mãe morta. E tem escrito cartas à ex-mulher, a pedir-lhe desculpas”.

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