O dia em que Trump e Sanders esperam transformar raiva e desilusão em votos

O primeiro capítulo das eleições primárias nos EUA, no estado do Iowa, vai servir para perceber até que ponto os eleitores estão determinados a afastar os seus partidos do centro.

Os resultados no Iowa podem reanimar candidaturas que têm uma morte anunciada
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Os resultados no Iowa podem reanimar candidaturas que têm uma morte anunciada Mark Kauzlarich/Reuters
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Donald Trump JIM YOUNG/REUTERS
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Hillary Clinton ADREES LATIF/REUTERS
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Bernie Sanders Reuters
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Ted Cruz JOE RAEDLE/AFP

Ao fim de seis meses com candidatos aos gritos, a lançar ofensas, comentários racistas, ataques pessoais ou colectivos, e de um sem fim de notícias e análises que se mostraram definitivamente certas até se ter provado que estavam completamente erradas, chegou o dia de os eleitores norte-americanos se levantarem das cadeiras do café e fecharem o Twitter para começarem a escolher o próximo Presidente dos Estados Unidos da América.

Os primeiros a votar são os habitantes do Iowa, onde os candidatos que se apresentam como porta-vozes dos desiludidos com a política têm mais espaço para transformar essa desilusão em votos – numa sondagem feita em meados de Janeiro para o jornal Des Moines Register, seis em cada dez eleitores do Partido Republicano no Iowa definem-se como "profundamente religiosos"; do outro lado, quatro em cada dez eleitores do Partido Democrata dizem ser "socialistas".

Mais do que qualquer outro estado, o Iowa é importante para finalmente se começar a perceber que caminho podem seguir candidaturas como as de Donald Trump, no lado do Partido Republicano, ou de Bernie Sanders, no Partido Democrata, contra os representantes do chamado establishment, como Hillary Clinton ou Jeb Bush.

Apesar das diferenças fundamentais que existem entre o magnata do imobiliário que quer construir um muro na fronteira com o México e obrigar os mexicanos a pagar por ele, e o senador do Vermont que quer transformar os EUA numa gigantesca Dinamarca, um e outro representam nesta campanha os eleitores que estão fartos do sistema – estão fartos das famílias Bush e Clinton, fartos do centrão, fartos daquilo que vêem como as politiquices do Congresso, para o qual olham como o sítio onde ninguém se entende e quase toda a gente se limita a aprovar leis à medida dos banqueiros de Wall Street.

No caso de Donald Trump, é tentador olhar para a sua candidatura como um enorme sketch do programa Saturday Night Live, mas nos últimos tempos até os mais conhecidos humoristas começam a falar a sério – e, como quase sempre, conseguem ir mais directamente ao assunto do que muitos jornalistas e analistas políticos.

Na semana passada, quando o magnata do imobiliário e estrela da televisão anunciou que iria boicotar o último debate entre os candidatos do Partido Republicano antes da votação no Iowa, o apresentador do The Daily Show, Trevor Noah, resumiu o que realmente estava em causa – e não era o conflito com a moderadora Megyn Kelly, nem o receio de ser encostado às cordas pelo senador Ted Cruz, que está colado a ele nas sondagens.

"Mais uma vez, senhoras e senhores, Donald Trump ganhou a única luta que lhe interessa – a luta pela atenção. Participar em mais um debate não iria ajudar Donald Trump a ter a atenção dos jornalistas. Mas borrifar-se para um? Isso é como cruzar o Deflategate [um escândalo no mundo do futebol americano] com um desastre natural e a descoberta de um vídeo de sexo com uma celebridade."

O analista Peter Ross, do grupo conservador Institute for Liberty, resumiu no U.S. News & World Report o apelo da candidatura de Donald Trump: "As pessoas perderam a fé no sistema, e transferiram-na para um único homem porque estão fartas de esperar por uma mudança que desejam e que nunca chega. Querem ganhar, e querem ganhar agora, e não se importam de que forma lá chegam. A campanha dele é uma sublevação populista contra uma liderança e uma cultura que deixou de ouvir os eleitores há algum tempo."

O problema de Donald Trump – e a esperança dos que o consideram um perigo para o país e para o resto do mundo – é que a sua popularidade no Twitter pode não ser o melhor dos barómetros, e a "maioria silenciosa" a que os cartazes nos seus comícios fazem alusão pode não passar de uma minoria muito – mas mesmo muito – ruidosa.

Muito cedo para certezas
O processo de nomeação de um candidato no Partido Democrata e no Partido Republicano é tão longo e complexo como imprevisível. E são muitos os exemplos que a memória trata de ir apagando e a histeria mediática se encarrega de desvalorizar em benefício de sound bites.

Em Janeiro de 2008, uma sondagem da CBS e do The New York Times sobre as primárias no Partido Democrata deu 42% a Hillary Clinton e 27% ao então senador do Illinois, Barack Obama. De forma surpreendente, Obama venceu a votação no estado do Iowa e o resto é História.

Nenhum exemplo do passado serve para antever o que vai acontecer nos próximos meses, mas é sempre mais fácil embarcar em certezas absolutas – a verdade é que, apesar das sondagens, sabemos quase tanto hoje sobre a possibilidade de sucesso de candidatos como Donald Trump ou Ted Cruz como sabíamos em Julho, quando as sondagens não davam mais do que 5% de possibilidades ao magnata e antigo apresentador do programa O Aprendiz.

O caso é ainda mais difícil de prever no estado do Iowa, que escolhe os seus candidatos preferidos de uma forma muito peculiar, que exige mais esforço da parte dos apoiantes do que chamar nomes aos candidatos do sistema numa mesa de café ou através de uma mensagem partilhada no Twitter.

Em vez de votarem em primárias – que funcionam basicamente como as eleições em Portugal –, os eleitores do Iowa têm de sentir-se suficientemente motivados para enfrentarem o frio ao cair da noite, por volta das 19h locais, e dirigirem-se a um local na sua área de residência, não apenas para votar mas também para discutir um pouco de política. É por isso que os candidatos anti-sistema, como Donald Trump, vão beneficiar se a afluência for superior ao normal – porque dependem de conseguir arrastar os insatisfeitos das mesas do café e do Twitter para uma assembleia onde provavelmente nunca puseram os pés.

Mais do que ninguém, Trump sabe que uma coisa é disparatar nas redes sociais, e outra, bem mais complicada, é sair de casa e traduzir tweets em votos. "Vocês têm de ir às assembleias, ou então andámos todos aqui a perder tempo", disse o candidato no sábado, na cidade de Dubuque, no Iowa, num tom pouco habitual, que soou quase a desespero para um candidato que na televisão e nas redes sociais garante já ter a vitória no bolso.

I will be in Iowa all day and until Tuesday morning. Finally, after all these years of watching stupidity, we will MAKE AMERICA GREAT AGAIN!

— Donald J. Trump (@realDonaldTrump) January 30, 2016

E deixou o aviso: "A não ser que eu ganhe, tudo isto terá sido para mim uma grande, gorda, maravilhosa e – já agora – muito dispendiosa – perda de tempo. Se eu não ganhar, talvez aconteçam coisas más."

Mas nestas coisas das eleições nos EUA, em particular em estados com caucus, como o Iowa, ninguém melhor para tomar o pulso da campanha do que os jornais locais, como o Carroll Daily Times. Em declarações ao Washington Post, um dos donos do jornal do Iowa, Douglas Burns, aposta que a afluência vai ser muito superior ao habitual: "Há um nível de raiva que Trump consegue captar muito melhor do que Ted Cruz."

Vários vencedores?
Mais do que olhar para o topo da tabela quando os resultados finais forem divulgados, na próxima madrugada (hora em Portugal), as campanhas dos vários candidatos vão olhar para os resultados que cada um obteve em comparação com o que deles se esperava. Por exemplo, se Marco Rubio conseguir ser o 3.º mais votado no Partido Republicano, com uma votação sólida, não muito longe de Ted Cruz e de Donald Trump, pode catapultar a sua candidatura e conquistar o voto útil da (enorme) fatia do eleitorado Republicano que não suporta a ideia de ver Trump como seu representante; da mesma forma, se Bernie Sanders conseguir vencer no Iowa (onde está taco a taco com Hillary Clinton nas sondagens) e na próxima semana no New Hampshire (onde lidera em quase todas as sondagens), pode assombrar a campanha de Clinton com o fantasma das primárias de 2008, quanto também tudo parecia decidido até que Barack Obama lhe trocou as voltas.

Mas Sanders – um veterano senador que se apresenta como socialista democrático – tem o mesmo problema de Donald Trump, com uma pequena diferença: enquanto o magnata do imobiliário tem de arrancar um eleitorado branco, furioso e mais velho das mesas de café e do Twitter, o senador do Vermont tem de empurrar os jovens universitários brancos para fora dos campus das universidades e do Twitter, e esperar que eles traduzam o seu desejo de mudança em votos.

Como em qualquer eleição nos EUA, é a demografia, estúpido. A história de Carol Rivas, uma mulher reformada do Iowa que vai votar em Hillary Clinton, é um bom exemplo da divisão do eleitorado no Partido Democrata.

"O Bernie [Sanders] fala muito bem, e diz sempre o que as pessoas querem ouvir. Mas eu não sei onde é que ele vai arranjar dinheiro para pagar isso", disse Rivas ao The New York Times. A sua filha, que mora na Califórnia, telefona-lhe todos os dias para tentar convencê-la a votar em Bernie Sanders.

Apesar do surpreendente ganho de popularidade de Sanders, o seu caminho para a nomeação no Partido Democrata é mais tumultuoso do que o de Donald Trump no Partido Republicano. Pelo menos por agora, Hillary Clinton mantém uma vantagem confortável nas sondagens a nível nacional, tem muito mais dinheiro do que Bernie Sanders, e tem no bolso a maioria dos 700 superdelegados que têm liberdade de voto na convenção nacional – a reunião que formaliza a nomeação do candidato à Casa Branca, e que no caso do Partido Democrata vai decorrer entre 25 e 28 de Julho em Filadélfia, na Pensilvânia.

"O perigo para Clinton", escreve no The Washington Post o repórter de política Chris Cillizza, "é se as suas vantagens institucionais – dinheiro, apoio dos superdelegados – forem ultrapassadas pelos acontecimentos, principalmente se for derrotada no Iowa e no New Hampshire. Mesmo nesse cenário, Clinton poderia sobreviver e vir a ser nomeada. Mas o seu caminho seria muito mais longo – e atribulado."

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