Barack Obama defende o seu legado na Casa Branca e enuncia manifesto anti-Trump

Num discurso voltado para o futuro, o Presidente dos EUA alertou para os perigos do populismo e pediu aos americanos para não alimentarem preconceitos nem se deixaram levar pela retórica do medo.

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Barack Obama na Casa Branca, antes do seu último discurso sobre o Estado da Nação MANDEL NGAN/AFP

Se nada de realmente extraordinário acontecer até ao final deste ano, o Presidente dos Estados Unidos da América, Barack Obama, não voltará a discursar perante as duas câmaras do Congresso, reunidas com pompa e solenidade, e reverência e simbolismo, para tomar conhecimento do Estado em que se encontra a União. Por isso, naquela que foi a última intervenção da sua presidência, Obama aproveitou o momento: improvisou piadas, saboreou os aplausos, desafiou os assobios e – sem a preocupação de um novo ano de governo para além de 2016 – apresentou um primeiro rascunho, pessoal e político, de avaliação dos anos que passou na Casa Branca.

Barack Obama despediu-se do Congresso com um discurso que apresentou como uma espécie de prelecção sobre o futuro mas foi, na verdade, uma convicta e emotiva defesa do seu legado. Pelas circunstâncias do calendário, a ideia da Casa Branca era que o discurso sobre o Estado da União pudesse servir como um tiro de partida na corrida eleitoral, com o Presidente a redefinir os termos do debate e também o seu conteúdo político: ao insistir nos progressos alcançados nos últimos oito anos, e avançar ideias para a sua consolidação – nos próximos cinco ou dez anos, “e ainda mais além no futuro” – Obama pretende influenciar a forma como se vai desenrolar a campanha para a escolha do seu sucessor.

Como da primeira vez que se dirigiu aos legisladores, no início de 2009, ainda embalado pela onda de boa-vontade e optimismo gerada pela sua eleição a todos os títulos histórica, Obama recuperou os temas que lhe são queridos, eternos slogans da sua campanha, e falou da “audácia da esperança” e da mudança em que se pode acreditar”. Mas ao contrário dessa altura, não foi um discurso de promessa: o retrato da União que Obama vai deixar foi pintado em cores vivas e alegres. Os EUA, enumerou, são agora um país que recuperou da “pior crise económica em gerações”, que reformou o seu sistema de saúde e reinventou a sua política energética, e assegurou que em todos os estados, os cidadãos têm a liberdade de casar com a pessoa que amam…

“Vivemos tempos de extraordinárias mudanças, que estão a mudar a forma como vivemos, como trabalhamos, o nosso planeta e o nosso lugar no mundo. São mudanças que podem alargar as nossas oportunidades, mas também propagar as desigualdades”, assinalou. Nesse sentido, o Presidente mostrou-se satisfeito e até orgulhoso de tudo o que a sua Administração alcançou desde 2009, debaixo de enormes constrangimentos e perante uma oposição feroz. Obama não resistiu a mencionar a sua reforma do funcionamento do sistema de saúde, ou Obamacare – "embora o meu palpite seja que não vamos concordar sobre esse assunto tão cedo” –, ou a assinatura do acordo global sobre o clima – “E se alguém ainda quer negar toda a ciência sobre as alterações climáticas, esteja à vontade, mas parece-me que vão estar a discutir sozinhos”, notou.

Mesmo se as suas ambições para os meses que lhe restam na Casa Branca são agora mais limitadas, não deixou de nomear algumas questões pendentes, delicadas ou controversas, que gostaria de resolver antes de voltar a ser um cidadão comum: uma delas é a regulação do comércio e uso de armas pessoais, que na semana passada tentou pela via administrativa; outra o encerramento do campo militar de Guantánamo, onde ainda permanecem detidos cerca de cem alegados combatentes estrangeiros sob suspeita de terrorismo.

“Compreendo que como estamos em época eleitoral, as expectativas relativamente ao que seremos capazes de fazer sejam muito baixas”, observou o Presidente, que nessas duas questões, como também no levantamento do embargo comercial a Cuba, na assinatura do novo pacto de comércio livre com a Ásia-Pacífico ou na autorização do uso da força militar contra o Estado Islâmico, pediu acção legislativa por parte do Congresso.

O maior arrependimento
Aliás, por já se sentir liberto dos constrangimentos da agenda legislativa (no último ano de mandato, os presidentes já não avançam novas políticas para aprovação pelo Congresso, limitando-se a gerir iniciativas que possam definir o seu legado), Barack Obama usou o seu discurso para censurar, veladamente ou abertamente, a oposição republicana, que desde o primeiro momento nunca escondeu o seu desejo de interferir, bloquear ou travar a agenda política do Presidente.

Num genuíno momento de autocrítica, Barack Obama admitiu a sua quota-parte de responsabilidade pelo ambiente tumultuoso que se vive em Washington, lamentando não ter os talentos de anteriores líderes como Abraham Lincoln e Franklin Roosevelt para “construir pontes” e ultrapassar os rancores e desconfianças que actualmente minam o debate e a acção política. “É um dos poucos arrependimentos da minha presidência, de não ter sido capaz de evitar as divisões e as suspeições entre os partidos, que pioraram em vez de melhorar. Garanto que continuarei a tentar ser melhor enquanto estiver neste cargo”, prometeu.

Se uma parte considerável do seu discurso ofereceu uma comovente defesa da identidade americana, dos valores da cidadania, do envolvimento e da participação cívica no debate político e na vida pública, a despedida do Presidente no Congresso tomou a forma de um manifesto, poderoso e cristalino, sobre os malefícios do populismo, da intolerância e da exclusão, sobre os perigos de explorar a insegurança e o medo e de alimentar os preconceitos e a divisão para obter vantagem política – um manifesto anti-Trump.

Obviamente, Obama nunca referiu o nome do concorrente milionário que lidera as sondagens da corrida pela nomeação republicana, mas não terá passado pela cabeça de ninguém que pudesse estar a pensar noutra pessoa quando disse que “sempre que um político insulta muçulmanos, sejam eles estrangeiros ou os nossos concidadãos; sempre que uma mesquita é vandalizada, ou um miúdo é insultado, isso não torna o país mais seguro. Isso não é falar claro, é simplesmente errado”, declarou. Atrás de si, o impassível Paul Ryan abanou a cabeça em concordância, e bateu palmas quando o Presidente descreveu essa retórica como “uma traição” dos valores do país.

Enquanto isso, fiel à sua personagem, Donald Trump escrevia no Twitter que a intervenção de Obama sobre o Estado da União tinha sido “um dos discursos mais aborrecidos, desconexos e insubstanciais” que se lembrava de ter ouvido “há muito tempo”. Mais comedida, a resposta oficial do Partido Republicano, proferida pela governadora da Carolina do Sul, Nikki Haley, chamava a atenção para as diferenças entre as palavras inspiradoras do Presidente no pódio e os resultados das suas políticas, que na sua opinião não resultaram. O país enfrenta a mais perigosa ameaça à sua segurança desde os ataques de 11 de Setembro, as grandes cidades são palco de “cenas caóticas” e a instabilidade marca o quotidiano das famílias que se confrontam com uma economia em dificuldades, alegou.

A intervenção do Presidente, de cerca de 70 minutos (15 dos quais foram aplausos, quase sempre vindos exclusivamente do público e da bancada democrata), foi um exercício minucioso de desconstrução da narrativa negativa dos republicanos, que no Congresso, em campanha, e nos media, não se cansam de assinalar erros e falhanços na acção do Presidente. Para eles, a América de Obama não é o país forte, próspero e credível descrito ao Congresso – é uma potência fraca, e a disponibilidade para negociar, promover consensos e aceitar compromissos não é um trunfo nem um progresso face ao ditame do passado, contrapõem os conservadores.

Com factos e números, Obama argumentou que os EUA atravessam um momento alto e se encontram numa posição invejável, “a postos para um futuro brilhante” – na indústria, no ensino, na ciência e investigação, na diplomacia, na justiça e respeito pelos direitos de todos.

“Neste momento, os EUA têm a economia mais forte e mais durável do mundo, e quem quer que diga que a economia americana está em declínio está a falar numa ficção”, desmentiu Obama (nos ecrãs, a incomodidade do Speaker Paul Ryan, que tem apregoado essa, era indisfarçável). Mais: “Toda esta retórica sobre os nossos inimigos estarem mais fortes e nós estarmos mais fracos? Os EUA são o país mais poderoso do mundo, ponto final. É que não há a mínima comparação”, sublinhou, acrescentando que apesar de tudo, não é na supremacia bélica que reside o seu poder.

Apesar de reconhecer a existência de riscos e ameaças, o Presidente recusou dar eco às vozes que apontam a iminência de uma terceira guerra mundial ou que envolvem os EUA num choque de civilizações. “Não podemos invadir e reconstruir todos os países que estão em crise. Isso não prova a nossa liderança, atira-nos para o charco”, considerou.

Desafios do futuro
Calejado e experiente, Obama jogou com o facto de falar a menos de um mês do arranque das eleições primárias que escolherão os dois candidatos, democrata e republicano, à Casa Branca (até disse àqueles que estavam ansiosos por viajar para o Iowa, o primeiro estado a votar, que lhes podia dar dicas. “Eu já lá estive, sei como cumprimentar as pessoas”, lembrou). Além de rebater os argumentos dos seus adversários, quis vincar o contraste entre os diferentes modelos – e as distintas visões – para o futuro do país.

A escolha em Novembro, disse Obama, tem a ver com a forma como pretendem os americanos enfrentar os desafios e realizar o "potencial" da América para se tornar ainda melhor. “Vamos responder aos desafios do nosso tempo virando-nos para dentro enquanto nação e voltando-nos uns contra os outros enquanto sociedade? Ou vamos enfrentar o futuro com confiança em quem somos, naquilo que representamos e nas coisas incríveis que conseguimos fazer juntos?”, perguntou.

“O futuro que queremos — oportunidade e segurança para as nossas famílias; uma melhor qualidade de vida e um planeta mais pacífico e sustentável para os nossos filhos — está ao nosso alcance. Mas só acontecerá se trabalharmos juntos, se tivermos debates construtivos e racionais. Isso não quer dizer que temos de concordar. Podemos discordar. Mas a democracia exige laços básicos de confiança entre os cidadãos, e deixa de funcionar se as pessoas sentirem que as suas vozes não são ouvidas”, declarou.

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