Putin emerge do seu isolamento como mediador inevitável para a paz na Síria

O Presidente da Rússia vai falar nas Nações Unidas pela primeira vez em dez anos. Qualquer solução para a Síria tem agora de passar por ele.

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Morreram cerca de 240 mil pessoas na Síria desde o início da guerra. Alepo, na fotografia, está devastada. Karam al-Masri/AFP

A Rússia entrou com estrondo no palco da diplomacia internacional ao posicionar-se militarmente na Síria no início do mês. Para surpresa dos Estados Unidos e da Europa, o Kremlin começou a transformar a sua base aérea em Latakia, na costa do Mediterrâneo, e a preparar a “primeira fase” da sua intervenção na Síria, como escreve o Financial Times. Em poucas semanas, a Rússia enviou centenas de militares para apoiar Assad – em breve serão 2000 –, tem já dezenas de caças, tanques modernos e sistemas antiaéreos de última linha

Moscovo faz mais do que sair do isolamento ao enviar tropas para a Síria. Assume-se também como intermediário de poder na região, reforçando o papel do aliado Irão e colocando-se ao mesmo nível que os Estados Unidos. É algo que se torna evidente com a transformação do diálogo internacional que causou. Barack Obama, que quis isolar Putin desde a anexação da Crimeia e que desde então só teve um contacto telefónico com ele, aceitou encontrar-se com o líder russo nesta segunda-feira, em Nova Iorque. Os exércitos russo e norte-americano, também em silêncio desde 2014, retomaram contactos de forma a garantirem que não se enfrentam acidentalmente no espaço aéreo sírio.

Mas na Síria, é o Irão, e não a Rússia, quem mais sustenta militarmente o regime de Assad. Qualquer solução para o conflito teria de passar sempre por Teerão e a intervenção de Putin está a sublinhá-lo. O secretário de Estado norte-americano, John Kerry, tinha encontro marcado no domingo com os homólogos da Rússia e Irão especificamente para discutir a estratégia para a Síria. Um avanço importante, já que Washington afastou no passado a possibilidade de o Irão fazer parte de um fim negociado do conflito. Parece ser inevitável: no domingo, o Governo iraquiano anunciou a criação de um gabinete de guerra contra o Estado Islâmico coordenado por Bagdad, Moscovo e Teerão. Vão partilhar informações sobre os extremistas

Falhanço do Ocidente
Foi o Ocidente quem estendeu a passadeira para a iniciativa russa e iraniana. A resposta dos Estados Unidos e Europa à guerra na Síria tem sido, no melhor dos casos, ineficaz. Os bombardeamentos da coligação ao Estado Islâmico na Síria e Iraque não conseguiram evitar alguns avanços do grupo extremista – sobre Palmira, por exemplo –, embora pareçam ter evitado uma expansão mais agressiva. As bombas ocidentais mataram à volta de 8000 jihadistas em pouco mais de um ano. Mas não sem consequências graves. Morreram entre 150 a 460 civis nestes bombardeamentos, segundo estimativas de grupos que monitorizam o conflito.

Só os curdos no Norte da Síria têm conseguido avanços importantes contra os jihadistas. Mas estes têm uma aliança tácita com a administração de Assad e estão mais interessados em preservar os seus projectos de autonomia do que participar num futuro político em Damasco. Os grupos rebeldes moderados que os Estados Unidos esperavam armar e treinar na Síria contra o Estado Islâmico são uma ilusão. Quem tem mais poder no terreno são os extremistas, que absorveram parte da oposição moderada.

A Divisão 30, nome dado ao primeiro grupo de rebeldes treinados e equipados pelos americanos a custo de 500 milhões de dólares, foi capturada ou transformada em rede jihadista. Há duas semanas havia apenas “quatro ou cinco” deles em combate na Síria, segundo admitiu o próprio Pentágono, embora já tenham entrado mais algumas dezenas de paramilitares no país desde então. Mas mesmo estes últimos sofreram um revés, na semana passada, ao terem de oferecer um quarto do seu armamento norte-americano à poderosa célula da Al-Qaeda na Síria, a Frente al-Nusra, a troco de não serem capturados.

A chegada de dezenas de milhares de refugiados sírios às costas europeias está a destruir a ilusão de que o mundo ocidental pode decidir o conflito sírio à distância. Mas nem por isso Washington se prepara para abandonar a linha de acção: no início do mês, o New York Times noticiava que estava em calha um novo plano de treino de rebeldes, em maior número, “melhor equipados e mais motivados”.

E Assad?
A entrada em força da Rússia no conflito sírio está a acelerar a transformação de Assad aos olhos do Ocidente. É uma mudança gradual, mas evidente. Os governos que antes exigiam a saída imediata do ditador sírio antes de qualquer processo de negociação de paz, admitem agora que Assad faça parte de uma plataforma de transição. Segundo a BBC, o primeiro-ministro britânico, David Cameron, vai a Nova Iorque dizer isso mesmo. A Alemanha partilha a mesma ideia e até os Estados Unidos já são menos severos. A França apelará sozinha durante a Assembleia Geral para que o Presidente sírio saia imediatamente do poder. Até o Presidente turco e velho rival de Assad, Recep Tayyip Erdogan, admitiu domingo que Assad pode fazer parte da transição de poder.

O objectivo do discurso de Putin é mudar o compasso para o Estado Islâmico e desviá-lo da imagem do ditador sírio. Continua a ser Assad, com os seus repetidos ataques indiscriminados a zonas residenciais com armas químicas e bombas-barril, o principal responsável pela mortandade da guerra na Síria. Rússia e Irão podem abrir mão do ditador no futuro, mas, por enquanto, não admitem perder o seu foco de poder na região. Putin deve dizer nas Nações Unidas o que afirmou numa entrevista a televisões norte-americanas, emitida no domingo: não há alternativa à administração de Assad, sob pena de o país cair na mesma situação da Líbia, “onde todas as instituições do Estado estão desintegradas”.

É a primeira vez que o Presidente russo fala na Assembleia Geral em dez anos. Antes dele, ainda durante a manhã desta segunda-feira, será Obama quem toma o palco. Terá sobre si o convite do Presidente russo para criar uma “frente coordenada” contra o Estado Islâmico na Síria. É um convite que implica aceitar que, pelo menos num futuro próximo, Assad é uma inevitabilidade. 

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