Achtung! A crise grega continua nos próximos meses

Com a política europeia neste círculo vicioso, a crise grega vai continuar nos próximos meses, ou anos. Até que um milagre ou uma catástrofe lhe ponham fim.

1. Afastemos as análises simplistas e parciais. Geram a falsa sensação de domínio de um assunto. A crise na Grécia tem múltiplas facetas, internas e externas, que não podem ser tratadas como se não tivessem qualquer relação entre si. Qualquer solução para um problema com esta complexidade implica considerar o todo.

Um decisor político com responsabilidades de Estado, sabe, deveria saber, que tem de lidar com a totalidade. O académico e o analista podem compartimentar o problema, discutindo-o na perspectiva que lhes é familiar e apontando soluções, como se o resto não existisse. Criam, frequentemente, a falsa sensação de terem uma solução. O mundo real não se compadece com tais abstracções e soluções compartimentadas. A capacidade de aprender o todo, de decidir em espaços de tempo curto, sob grande pressão, e de antecipar consequências, são fundamentais para o decisor político. A crise grega não pode ser tratada como se fosse um problema de dívida, só. As suas múltiplas facetas – política, social, económico-financeira, geopolítica etc. –, têm interacções complexas, nem sempre fáceis de discernir e com consequências potencialmente graves para o futuro europeu.

2. Está a emergir uma dimensão política europeia, mas não como muitos imaginavam ou desejavam. Não segue uma linha “federal” (leia-se pró-europeísta), de rotatividade, ao longo de dois grandes partidos “europeus” e suas ramificações nacionais. Essa linha é representada tradicionalmente no Parlamento Europeu pelo Grupo do Partido Popular Europeu/Democratas-Cristãos e pelo Grupo da Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas. O que está a surgir é algo muito mais fragmentado e multifacetado, quer ao longo do espectro ideológico, nos grupos e partidos em que se corporiza, bem com nas interacções entre a política nacional e a política europeia. O Syriza (Grécia), o Podemos (Espanha), os Verdadeiros Finlandeses (Finlândia), ou o Partido do Povo Dinamarquês (Dinamarca), entre outros, são exemplos dessa tendência. Alimenta-se da dimensão europeia dos problemas nacionais. De facto, estamos a assistir ao nascimento de uma nova era de interacções entre a política nacional e política europeia, sem precedentes, para a qual não estávamos preparados. Há ligação entre a emergência destes grupos/partidos a Norte e a Sul da Europa? Provavelmente há. Parece, até, ocorrer um padrão: a actual crise está a criar um terreno para a esquerda cívica/alternativa/populista a Sul; e para a direita conservadora/ nacionalista/ populista, a Norte (os rótulos variam consoante a visão ideológica). Mais: os processos eleitorais num Estado-membro têm reflexos, cada vez mais evidentes, noutros Estados-membros. O padrão que parece emergir é este. A Sul, nos Estados tradicionalmente beneficiários líquidos do orçamento da União, o voto contestatário é captado pela esquerda fora dos usuais partidos de poder. A Norte, onde está a esmagadora maioria dos contribuintes líquidos para o orçamento da União, o voto contestatário é captado principalmente à direita, em grande parte fora dos usuais partidos de poder. O caso britânico, que contém várias especificidades, amplifica essa tendência. A vitória eleitoral dos conservadores britânicos está a ter reflexos na Dinamarca. O Partido do Povo Dinamarquês, da coligação de direita vencedora nas últimas eleições, reivindica similar atitude: renegociação dos termos da relação com a União Europeia, saída do acordo de Schengen, referendo sobre a pertença à União Europeia. Há, por isso, um risco a não descartar: as concessões que a União possa fazer à Grécia tendem a alimentar, ainda mais, o voto contestatário na direita anti-União Europeia, ou eurocéptica. Pior: esta fragmentação bloqueia as decisões mais críticas.

3. A questão da solidariedade, ou falta dela, reflecte bem o problema. Quando a palavra é usada entre nós tem um significado que parece evidente, ao ponto de não necessitar explicação: evoca, basicamente, a ideia de uma solidariedade financeira. Todavia, para diferentes europeus, a solidariedade contém percepções variáveis, matizadas pela história e situação político-económica interna e externa de cada Estado. A questão financeira, não é, necessariamente, a que vem primeiro à mente. A recente aproximação da Grécia à Rússia, mostra bem essas diferentes percepções. Para o governo grego, foi a falta de solidariedade da União Europeia que levou a Grécia a procurar uma alternativa económica junto da Rússia. No entanto, importa recordar, quase em simultâneo, decorria na Polónia e Estados Bálticos um exercício militar de envergadura, próximo do território russo de Kaliningrado. Para esses Estados do Leste europeu, foi uma necessária demonstração da solidariedade europeia e da NATO, com o que percepcionam ser um crescente ameaça russa. Na sua óptica, provavelmente houve uma falta de solidariedade da Grécia, criticável enquanto membro de ambas as organizações. Para os gregos, as exigências da UE e FMI são vistas como uma ameaça à sua soberania. Para os Bálticos e a Polónia, é a Rússia que ameaça a sua soberania. A complicar a percepção, mesmo no terreno da solidariedade financeira: a Grécia, apesar da profunda recessão, com um PIB per capita de 73% da média europeia, terá um valor superior ao da Letónia (64%) e da Polónia (67%) e idêntico ao da Lituânia (73%) e Estónia (73 %). Por que razão transferir mais recursos financeiros para um Estado com igual ou superior nível de vida? – é a pergunta óbvia, na mente de muita gente no leste europeu.

4. Face à necessidade decisões críticas, a União Europeia tende a não decidir. Foi assim em Fevereiro último, após a chegada do Syriza ao poder na Grécia. Voltará a ser assim esta semana (?). Um acordo com a Grécia, que poderá existir pelos sinais políticos de ambos os lados, será uma forma de evitar o pior, no imediato. Os actos da tragédia parecem ser, cada vez mais, previsíveis. Acto I - abertura de novas negociações; acto II - pressão dos prazos de pagamento aos credores; acto III - posições consideravelmente divergentes e trocas de acusações públicas; acto IV - risco de bancarrota e saída do Euro a subir (clímax); acto V - propostas e concessões de última hora, engenharia semântica para salvar a face e evitar o incumprimento imediato (desfecho). Epílogo: adiar o problema até que ele se volte a impor por si próprio, sem haver forma de o contornar (provavelmente, nos meses finais do ano, ou antes). Compreensivelmente, nem Jean-Claude Juncker, nem Mario Draghi, nem Angela Merkel querem ficar para a história como aquele(s) que tomou(ram) a decisão que levou à saída da Grécia do Euro, abrindo uma possível desintegração europeia. Ao mesmo tempo, também não dispõem dos meios suficientes para uma solução abrangente e duradoura. (Mesmo que os tivessem, sempre dependeriam da capacidade e vontade de execução da Grécia, um terreno difícil, pelas características da sua economia e sociedade, a mais avessa aos padrões de regulação europeia, imbuídos da cultura legalista do Norte da Europa). O impasse ocorre pela falta de instrumentos de governação económica europeia adequados para crises desta dimensão. Ocorre, também, pelos constrangimentos políticos nacionais (a divisão entre Angela Merkel e Wolfgang Schäuble, evidencia o problema). Ocorre, ainda, pelo receio dos efeitos colaterais a Norte (ascensão dos partidos anti-União Europeia) e a Sul (relaxamento das políticas de austeridade). Com a política europeia neste círculo vicioso – e com o governo da Grécia refém de promessas eleitorais não exequíveis –, a crise grega vai continuar nos próximos meses, ou anos. Até que um milagre ou uma catástrofe lhe ponham fim.

Investigador

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