Miguel Galvão Teles (1939-2015) – mestre de cidadania

Nós, seus alunos, nunca olvidaremos o seu desassombro e a sua coragem, nos momentos mais difíceis, e nas mais diversas circunstâncias, na defesa da liberdade.

Miguel Galvão Teles foi o meu primeiro professor de Direito. Jamais esquecerei esse dia de novembro de 1969. Percebemos, desde o primeiro momento, que o Direito Constitucional a sério tinha de ter a marca indelével da liberdade e da democracia. Nunca mais perdemos o contacto e cultivámos uma amizade que o tempo foi reforçando.

Como jurisconsulto, foi um dos mais brilhantes que alguma vez conheci. Desde muito novo, dando continuidade a uma tradição familiar, manifestou-se dotado de uma sensibilidade, de uma inteligência, de uma argúcia e de uma capacidade singularíssima para procurar soluções por caminhos novos e inesperados. Basta lermos a tese do 6.º ano do Curso Complementar de Ciências Jurídicas, Obrigação de Negociar: Esboço de Um Estudo (1963) para compreendermos a maturidade do jovem jurista, bem evidente noutras obras, como O Regime Jurídico das Campanhas Eleitorais no Direito Comparado (1973) e O Problema da Continuidade da Ordem Jurídica e a Revolução Portuguesa (1985). Era sempre capaz de ver para além do que era mais evidente, assim podendo ajudar na solução de complexas dificuldades. Para o Miguel, o Direito não era uma ciência formal ou rígida, era um instrumento dinâmico para resolver problemas. As leis devem ser feitas para as pessoas e daí a necessidade da clareza, da simplicidade e da parcimónia – tão difíceis de entender. Para si, o advogado, e foi dos nossos melhores de sempre, era o primeiro elo da administração da justiça, acreditando que a primeira instância dos tribunais estava no escritório do causídico. Por isso, nos ensinou sempre que o mau advogado é o que usa subterfúgios e procura fugir à essência dos problemas.

Como cultor do Direito Público, entendia que o Estado de Direito e a cidadania se afirmam e reforçam pelo equilíbrio de poderes e pela assunção com todas as consequências da lição de Montesquieu – só o poder legítimo limita o poder. Por isso, As Cartas Persas eram para ele uma ilustração essencial da exigência da salvaguarda dos direitos fundamentais a partir do respeito mútuo, da confiança entre poder e cidadãos, como articulação entre legitimação e legitimidade. António Araújo designou-o como "il miglor fabro". Não pode haver expressão mais adequada. No mundo do Direito, ele foi sempre dos melhores mestres. Quando há anos reunimos o nosso curso jurídico de 1969-74, o Miguel foi o convidado especial e nunca esqueceremos as palavras de grande amizade que nos dirigiu. A sua lição não pode ser esquecida. E nós, seus alunos, nunca olvidaremos o seu desassombro e a sua coragem, nos momentos mais difíceis, e nas mais diversas circunstâncias, na defesa da liberdade e daquilo que Isaiah Berlin designou como uma sociedade decente. Coerente, aberto, rigoroso, correto, amigo, solidário – cidadão a toda a prova!

Conselheiro de Estado, atento e perspicaz defensor do interesse público, intérprete dinâmico da Constituição da República (fazia já isso nesse ano distante em que nos conhecemos), foi sempre muito mais do que o Professor de Direito Constitucional (regente na nossa faculdade entre 1968 e 1973, e 1976 e 1978) que tanto admirámos, pois os textos que nos legou (e a prática que assumiu) são modelos de criatividade, de reconhecimento da importância da ligação íntima entre o Direito e o mundo da vida e de compreensão da diversidade – uma realidade imperfeita e perfectível.

Lembramo-nos da fundamental intervenção que teve como advogado em representação de Portugal no processo “Timor Gap”, que correu os seus termos no Tribunal Internacional de Justiça, onde demonstrou muito claramente o bem fundado de uma posição que a comunidade internacional veio a reconhecer. Afinal, o Direito e a evolução histórica têm de se compreender mutuamente – tornando-se tantas vezes necessário antecipar os acontecimentos através do entendimento da construção da legitimidade como articulação entre os fundamentos e a complexidade dos factos.

Pessoalmente, contei sempre com o seu bom conselho e a sua amizade. Em nenhum momento deixou de corresponder ao que lhe pedi – e devo dizer que, no domínio do constitucionalismo económico, encontrei em Miguel Galvão Teles uma capacidade única de interpretar as consequências de uma realidade que muda permanentemente. Se o Direito Privado tem um movimento mais lento e um ritmo pausado, o mesmo não acontece no Direito da Economia e das Finanças Públicas, em que tudo está permanentemente em causa. E era um regalo para o espírito vê-lo antecipar as circunstâncias e a tornar nítida a necessidade de andar adiante dos acontecimentos para eles não nos surpreenderem.

Presidente do Tribunal de Contas

O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico.

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