“Tudo o que se faz sem ouvir as pessoas é feito contra elas”

A Europa só tem futuro se for uma Europa de cidadãos, mais do a Europa económica que quis ser até agora. Para dentro e para fora, chefes de Estado e de Governo têm de passar a ouvir o que dizem e querem os seus cidadãos. Entrevista a Jean-Marie Heydt.

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Jean-Marie Heydt é presidente do Comité executivo do Centro Norte-Sul do Conselho da Europa Daniel Rocha

Esteve em Lisboa para a entrega do Prémio Norte-Sul, atribuído este ano a Aga Khan e à médica e activista libanesa Suzanne Jabbour, e entregue, como habitualmente, em Portugal, sede do Centro Norte-Sul.

Numa entrevista, o presidente do Comité executivo do Centro Norte-Sul do Conselho da Europa, o suíço e francês Jean-Marie Heydt falou do Norte e do Sul, do Mediterrâneo que é só um e do futuro, da Tunísia a Bruxelas.

Acaba de vir da Tunísia, da segunda Universidade do Mediterrâneo organizada pelo Conselho da Europa. Como é que vê o processo político no país. Ainda é o caso de sucesso das revoltas árabes?
Sou, por natureza, muito optimista. Segui a Tunísia desde o início da revolta, fiz lá férias de Verão em 2011. Os tunisinos brincavam comigo. ‘É simpático, mas veja lá… férias?’, perguntavam. Fui um desses loucos. Enfim, a cada nova viagem tenho encontrado muitos tunisinos e tunisinas cada vez mais inquietos. Inquietos com os desenvolvimentos, inquietos com o fosso que se abre entre os diferentes grupos da população e as suas expectativas. E, ao mesmo tempo, repletos de esperança. O que realmente me surpreende é o desconhecimento em relação ao funcionamento democrático, mesmo agora, mesmo entre os universitários. Os tunisinos têm lacunas profundas, não entendem como funcionam os mecanismos políticos de uma democracia, com excepção, em teoria, dos que estudam Ciência Política.

Parte dessas lacunas podem ser explicadas também com a falta de qualidade do jornalismo que continua a ser praticado.
Sem dúvida. Isso deixa-me algo pessimista quanto à capacidade para ultrapassarem os desafios. Mas na Tunísia encontro sempre gente muito diferente, tenho essa sorte. Um sindicalista, ferroviário na reforma, que participou na definição da própria data, do início dos protestos e da revolta, em Janeiro de 2011, por exemplo. Explicou-me como é que isso tudo foi vivido por dentro, e é formidável quando uma coisa destas acontece. E depois há o desespero das jovens ONG, que são muito menos agora do que durante a ditadura de Ben Ali. Primeiro explodiram em número, agora há menos do que antes. Há gente que criou movimentos, plena de esperança, e que agora se sente abandonada. Que está na expectativa, ainda, mas já com menos entusiasmo. Tudo junto, há uma evolução positiva. Se olharmos com olhos europeus, é lenta. Se a virmos com olhos de países comparáveis, é rápida.

O que é que a Europa pode e deve fazer?
A Europa deve ser sempre prudente na forma como age. Durante a Assembleia Constituinte tunisina havia deputados que queriam os conselhos da Europa e outros que nem podiam ouvir falar de nós. Há a ideia desta Europa ‘que quer decidir por nós, que nos quer controlar’, temos de ser cuidadosos. Se os europeus fizerem demasiada pressão, seja em que sentido for, isso pode bloquear o processo. Os tunisinos têm de avançar ao seu ritmo, e os europeus no mesmo, adaptados, com respeito total pelo ritmo tunisino. A UE queria que tudo avançasse mais depressa, como os Estados Unidos. A sabedoria do Conselho da Europa tem sido saber avançar de forma mais progressiva, com estes países de vizinhança, como lhes chamamos, a Tunísia e Marrocos.

Marrocos tem connosco uma parceria parlamentar, está na Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, é membro do Centro Norte-Sul. A Tunísia é um ‘país de vizinhança’ ainda sem esse estatuto, mas foi-lhe proposta uma co-presidência do fórum. A proposta foi aceite. No próximo Fórum do Conselho Norte-Sul, em Lisboa, em Setembro, a presidência será partilhada por um tunisino e um membro da Comissão Europeia. O fórum de 2014 vai centrar-se nos processos eleitorais e faz todo o sentido que a Tunísia participe dessa forma.

Os europeus sabem que tudo isto se passa à sua porta e lhes diz respeito? Que a Tunísia é um país vizinho, que a Síria ou o Egipto não ficam noutra galáxia, que fazem parte do mundo europeu e mediterrâneo?
Fazem parte constante do nosso mundo. Isso vê-se em Itália, com a chegada massiva de imigrantes. Na Grécia ou na Bulgária. Há algo que me preocupa muito. Temos leis e convenções que nos obrigam a proteger estas pessoas, os que querem cá chegar. Mas quando olhamos para Lampedusa [ilha de Itália, porta de entrada de muitos imigrantes vindos do Norte de África], temos um centro estatal que abriga imigrantes onde existe violência, máfias mas também prostituição. As pessoas não têm outras formas de sobrevivência. Temos leis e estados que não as conseguem fazer cumprir dentro das suas fronteiras. Recebem mas não protegem, não cuidam. Certo, não podemos receber em casa toda a miséria do mundo, mas estas pessoas já cá estão, nos nossos países. Tudo o que se passa no Iraque, na Síria, no Egipto, na Tunísia, faz parte do nosso quotidiano. Nem sempre os jornalistas sabem explicar isso às pessoas, prepará-las para o compreender.

Devíamos aprender com os erros e na UE têm sido cometidos muitos, como pressionar demasiado ou negociar com ditadores. Os líderes europeus costumam fazê-lo?
Muitas vezes, não. Há ONG europeias que fazem comércio na Tunísia revendendo computadores menos bons que alguns países têm para vender a preços mais baixos, e isto é só um exemplo. Devemos fazer comércio, mas não a qualquer preço.

Quando olhamos para os resultados das eleições europeias vemos partidos que usam o medo do outro para ganhar votos com muitos eleitos no Parlamento Europeu. Há um discurso europeu, verdadeiramente diferente e que se faça ouvir, para combater o discurso do medo?
Para mim, a Europa cometeu um erro desde a sua fundação: não explicar às pessoas para que serve, o que quer, para onde vai. Nenhum país perguntou à sua população que Europa queria, se preferia uma Europa federal, uma Europa de regiões. Se as pessoas discutissem, se houvesse debate sério, a construção seria diferente, mais sólida. A Europa é, regra geral, culpada de tudo o que é mau e responsável de tudo o que é bom.

Por exemplo, estamos a formar novos quadros nas universidades mas poucas vezes os preparamos para situações de vulnerabilidade. Na escola falamos do lado positivo da Europa, mas não explicamos nada sobre as situações limite que se vivem nas nossas cidades. Nós estamos a organizar um curso de Verão para jovens quadros onde eles serão obrigados a contactar com gente que vive na rua, que não tem nada a perder. Se não pensarmos numa Europa para todos, de todos, deixamos que o populismo se instale. E depois temos deputados que querem ser eleitos para o Parlamento Europeu para que os seus países saiam do Parlamento Europeu…

E como é que deixámos a situação chegar a este ponto? Houve sucessos, mas houve tantos erros e sinais de aviso. Ninguém deu por isso, estavam todos ocupados com a crise?
É fácil falar depois, mas penso que se os estados tivessem mesmo querido construir uma Europa das populações – e não uma Europa económica, como fizemos – tudo seria diferente. E depois lembrámo-nos, ‘ah, e os cidadãos?’. Espero com paciência para ver se os líderes europeus cometem o erro terrível de eleger um presidente da Comissão Europeia diferente daquele que a maioria dos cidadãos disse querer quando votou, em Maio. Seja da maioria de direita do Parlamento, seja [Jean Claude] Juncker ou não, a questão não é essa, a questão é que, pela primeira vez, todos os partidos disseram ‘estão aqui os candidatos, são estes, agora votem’ antes das eleições. [Juncker foi indicado pelos partidos europeus de centro-direita federados no PPE como candidato a suceder a Durão Barroso.] Se, agora, os chefes de Estado e de Governo decidirem de um forma que contrarie a vontade dos eleitores isso será um erro monumental.

Em cima de outros erros.
Sim, e isso ilustra bem o modo de funcionamento da Europa. Os estados estão todos sentados à mesma mesa, fingem que o funcionamento é supranacional mas na realidade é intergovernamental. Cada um defende os seus interesses. Assim nunca nada vai funcionar nesta Europa. Pode ser federal, pode ser outra coisa, não sei qual é o melhor modelo. Tem é de ser uma Europa que faça o que diga, não que diga uma coisa e depois faça outra.

Se os líderes que disseram ‘estes são os candidatos, votem’ confirmarem Juncker será um bom sinal para o que aí vem?
Sim, as pessoas vão confirmar que o seu voto vale alguma coisa. Vão pensar, ‘votámos e assim aconteceu’. E ao mesmo tempo vão ver que todos estes partidos populistas que fizeram eleger tantos deputados não mudam absolutamente nada. Votar numa extrema-direita ou noutra não muda nada. Agora, se virmos que toda a Europa é populista e não faz o que diz, então, qual é a diferença? Neste momento, damos às pessoas sinais terríveis.

Se os sinais começarem a ser positivos ainda há tempo para salvar a ideia de uma Europa inclusiva, plural?
Se formos rápidos, ainda podemos salvar as pratas. Mas os erros cometidos foram muitos, por questões estratégicas, dentro e fora de portas. Vejamos o caso do Egipto: claro que eu não fico contente com um Presidente islamista [Mohamed Morsi] mas ele foi eleito, lamento, foi eleito.

Nas primeiras eleições verdadeiramente livres e disputadas do país.
Pois, todos sabemos isso. Mas como ele foi eleito e não nos agrada, então ‘que seja derrubado pelos militares?’. Isso são sinais negativos, com sinais desses não teremos nenhuma Europa. Se dermos a volta e começarmos a dar sinais positivos ainda podemos salvar a construção da Europa, seja de que Europa for, uma Europa de regiões, uma Europa federal, com países no euro, outros fora do euro. Temos de nos adaptar muito, a Europa evoluiu muito, ia explodindo com os mais recentes alargamentos. Todos os economistas disseram que eram um erro monumental.

Várias situações vão contribuir para que se discuta cada vez mais uma Europa de regiões. A Catalunha, por exemplo, e outras regiões, querem ser independentes dos seus países e querem que a discussão se faça a esse nível. Isso pode ajudar?
Sim, se recuperarmos um pouco a génese da construção dos países e compararmos a construção da Suíça, por aglomeração, com quatro cantões que quiseram juntar-se, aglomerar-se... com outras… No interior da Suíça há diferenças, valões, etc.. Mas para fora, a Suíça é uma, um país. Se a comparo com a Revolução Francesa e com a construção de um país que se fez com a junção forçada de regiões, onde bretões e alsacianos foram obrigados a estar juntos…

Como aconteceu na maioria dos países.
Eu não sou um especialista em jardinagem. Mas sei que quando há ervas daninhas elas voltam. Nós obrigámos pessoas com culturas e histórias diferentes a juntar-se. A Alsácia é francesa e hoje ninguém questiona isso, mas a Alsácia foi durante mais tempo alemã ou germânica do que francesa. Hoje está tudo bem, mas só porque a Alsácia ainda mantém privilégios. Quando as populações, na sua história partilhada mais profunda, não a história vivida, porque isto passa através de gerações, sentem ter sido obrigadas a estar onde estão. Isso é totalmente diferente de sentirem que escolheram estar onde estão, por questões culturais ou linguísticas. Creio que a questão das regiões da Europa é muito útil. Se amanhã pedirmos aos europeus que nos apresentam propostas tendo em conta a realidade das regiões, vamos receber, com surpresa, uma série de propostas de regiões prontas a organizarem-se entre si. Se os homens e as mulheres que mandam souberem ouvir, teremos uma Europa das regiões inteligente e que faça sentido para as pessoas. Tudo o que se passa sem se ouvir as pessoas é feito contra elas.

A palavra-chave é ouvir, saber ouvir?
Sim, primeiro explicar tudo o que está em causa, depois perguntar e saber ouvir. Quando há um referendo federal na Suíça enviamos a todos os cidadãos um livrinho com os argumentos do que defendem o “sim” e o “não”, pormenor a pormenor, mais a posição do Conselho Federal [governo]. Se a cada desafio não mentirmos às pessoas e, em vez disso, lhes explicarmos o que está em causa, ‘nós pensamos de forma diferente, agora escolham’, isso significa que respeitamos os cidadãos, que os ouvimos. Com isso podemos ambicionar a construção de algo coerente e sólido.

Sem se começarem a ouvir as pessoas a Europa vai despenhar-se?
É preciso parar de pensar que vamos fazer uma Europa como os EUA. Seremos certamente diferentes, os EUA arrasaram a história e começaram de início, mas nós não podemos fazê-lo, a nossa história está cá, dos romanos até hoje. Tudo está cá, mesmo que seja só no nosso inconsciente colectivo.

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