Obama caminha sobre uma delicadíssima linha

Para derrotar o ISIS é preciso desfazer a “coligação sunita” que o apoia.

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1. Não é fácil resumir a declaração de Barack Obama sobre o Iraque, um misto de medidas militares e de pressão política sobre o governo de Bagdad. É ao mesmo tempo clara e cifrada. O ponto mais claro da mensagem: os Estados Unidos vão enviar 300 “conselheiros” militares mas jamais voltarão a combater no Iraque. Depois da “síndrome do Vietname”, os americanos sofrem da “síndrome do Iraque”. Se pudessem esqueceriam até a palavra Iraque.

A seguir, a mensagem é cifrada. Obama não falou expressamente em raides contra os jihadistas do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS). Deixou aberta a porta. Que vão lá fazer os 300 “conselheiros”? Segundo analistas, teriam como missão preparar eventuais raides contra os jihadistas do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS). Como? Recolhendo informação sobre os movimentos do ISIS e seleccionando alvos. A intelligence de Bagdad é má e os americanos não querem ser manipulados pelo Irão. Por outro lado, os EUA passam a dispor de homens no terreno — tal como o Irão já lá tem “guardas da revolução”.

2. Há outra mensagem cifrada: os eventuais ataques às colunas do ISIS estão dependentes de reformas políticas em Bagdad. Os EUA responsabilizam o primeiro-ministro iraquiano, Nouri al-Maliki, por uma política de marginalização dos sunitas que facilitou a ofensiva do ISIS. Mas os EUA não devem parecer — na expressão do general Petraeus — “a força aérea das milícias xiitas”. Seria deitar gasolina no fogo.

A análise que os americanos fazem da situação excede em muito o terrorismo e o horror do ISIS. Os jihadistas serviram-se da frustração e das regiões sunitas para multiplicar as suas forças. Encabeçam uma heteróclita coligação, aglomerando ex-militares nostálgicos de Saddam Hussein, diversos grupos islamistas e muitos chefes tribais revoltados contra Bagdad. Isolados não teriam a capacidade militar que demonstraram.

Obama deve assegurar aos sunitas iraquianos, mas também “à Jordânia, à Arábia Saudita e aos Emirados Árabes Unidos que os Estados Unidos não estão a passar um cheque em branco a Maliki”, assinala o analista militar Anthony Cordesman,

Mas também não podem surgir aos olhos da maioria xiita como paladino dos sunitas. Seria o desastre inverso. Senadores americanos pediram a demissão de Maliki como condição para intervir no Iraque. Obama tem de ser mais diplomata. Não pode fazer um ultimato ao primeiro-ministro numa situação de emergência sem apavorar os xiitas.

Maliki nunca escutou os avisos americanos e os protestos dos Estados árabes contra a sua política. Hoje está numa posição mais débil, embora tentando reforçar a coesão dos xiitas à sua volta.

Obama explora este “raro momento” em que dispõe de um efectivo poder de pressão sobre Bagdad. As eleições foram em Abril e ainda não foi constituído o novo governo. É uma “crucial janela de um par de semanas” para formar uma coligação que integre xiitas, sunitas e curdos, explica o correspondente do Financial Times em Washington.

Na sexta-feira, Obama teve a primeira boa notícia. O ayatollah Ali Sistani, suprema autoridade religiosa xiita, apelou à rapida formação de “um novo governo” e à eleição de um Presidente. Preveniu que “se o ISIS não for combatido e expulso do Iraque todo o mundo o lamentará amanhã, quando os lamentos não tiverem já sentido”. Foi lido como uma desautorização de Maliki.

3. Na conferência de imprensa de quinta-feira Obama não escondeu alguma relutância: é arriscado intervir num país que se está a fragmentar segundo linhas religiosas, étnicas ou tribais. Para dominar o ISIS é necessário desfazer a “coligação sunita” que o sustenta. Para isso, é necessário afastar Maliki. E Obama não tem nenhuma garantia de sucesso.

“Tem de caminhar sobre uma delicadíssima linha”, diz à CNN o analista irano-americano Vali Nasr, antigo conselheiro do Departamento de Estado. “Há medo de ambos os lados”. O ISIS quer ser olhado como “a voz dos sunitas”. Quer polarizar o islão. Não se limitou a prometer arrasar os santuários xiitas. Na semana passada, reivindicou o massacre de 1700 soldados xiitas em Tikrit (Norte). E espalhou vídeos, alguns deles manipulados para reforçar o horror. Ao certo não se sabe o número de mortos. Abu Bakr al-Baghdadi, líder do ISIS, desafiou os americanos: “Em breve nos encontraremos face a face e ansiamos por esse dia.”

A grande incógnita é o Irão. Apesar da sobrevivência de Assad, a guerra síria transformou-se num pesadelo político para Teerão. O Iraque pode ser pior. A “territorialização” do jihadismo sunita na Síria e no Iraque é um quebra-cabeças para os iranianos. Têm estado por trás de Malik. Mas não sabemos o que pensam e o que dizem a Maliki após a ofensiva do ISIS, que põe em xeque os seus cálculos geopolíticos.

4. O ISIS não tem força para chegar a Bagdad e ganhar esta guerra. Mas a possibilidade de criação do “jihadistão” sunita, a cavalo entre a Síria e o Iraque, não é um mero fantasma. Desde já ameaça fazer implodir o Iraque. A conquista de Mossul, que abriu caminho à tomada de Kirkuk pelos curdos e à posse do seu petróleo, foi um ponto de viragem talvez irreversível.

Após Mossul, “um Iraque unificado não é impossível mas altamente improvável”, diz à AFP o analista de segurança John Drake, ligado a um instituto da Lloyd’s. “As divisões estão demasiado vincadas. As fronteiras interiores, que existiam de facto, mudaram e é verosímil que se transformem em fronteiras de jure nos próximos anos.”

Outros analistas sublinham que a única via de o Estado iraquiano sobreviver será numa base federal ou, mais provavelmente, confederal. A Constituição permite-o. Seria a plataforma para romper a “coligação sunita” que o ISIS lidera. Na grande maioria, os sunitas são nacionalistas iraquianos. Querem uma partilha do poder mais equilibrada e autonomias regionais. Há outro argumento: se o Iraque se desfizesse em três entidades, os únicos que não teriam praticamente petróleo seriam os sunitas. São os que mais têm a perder.

Os curdos têm sido o actor mais inteligente e oportuno. O seu exército é eficaz. A tomada de Kirkuk, a “Jerusalém curda”, parece um facto consumado. Não têm pressa na independência formal, que suscitaria a hostilidade dos vizinhos. O Curdistão iraquiano é de facto quase independente e os curdos aprenderam a ser pacientes.

Resta o cálculo dos xiitas. O especialista norueguês Reidar Visser suspeita que Maliki, incapaz de controlar o conjunto do Iraque, tenha em mente um “Iraque xiita”, homogéneo e fácil de centralizar. Mas, a existir, tal desígnio levantaria a oposição iraniana. Por razões diferentes, a partilha do Iraque seria um pesadelo geopolítico para turcos, sauditas, americanos e iranianos. Sem falar nos chineses, sequiosos de petróleo e de estabilidade no Médio Oriente.

Enfim: o que Obama quis dizer é que o ISIS e o vespeiro iraquiano não se resumem a uma questão de raides aéreos.

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