Tudu ora son golpe é o rap como instrumento de resistência

“A toda a hora, só golpes [de Estado]/ os políticos cozinharam mais um golpe/ só golpes/ os militares deram outra vez um golpe”, cantou Masta Tito em 2012.

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Cartaz de Masta Tito DR

A denúncia dos atropelos em que a Guiné-Bissau tem estado mergulhada é feita não apenas – muitas vezes nem principalmente – pelo campo institucional e partidário. O combate à cultura do medo tem passado, por exemplo, por narrativas de jovens rappers que, há anos, dão forma a um “movimento contestatário” de intervenção que vai da denúncia do narcotráfico à rejeição do rótulo de “narco-Estado” ou à crítica à permanente instabilidade político-militar.

Miguel de Barros, sociólogo guineense que tem estudado o rap como instrumento de denúncia da situação sociopolítica e mobilização cívica considera – num texto sobre participação política juvenil em contextos de “suspensão” democrática – que a música contribuiu “para dar visibilidade às denúncias e à reivindicação social e política por parte dos jovens num contexto onde os protestos são controlados e de baixa intensidade”. O rap é pois na Guiné-Bissau um instrumento de resistência e denúncia dos desmandos e da corrupção potenciado pelo uso do crioulo, a língua franca do país, e pela difusão radiofónica, principalmente pela Rádio Jovem.

“Droga tchiga Guiné i djumblintinu senariu/Nhu alferis ku nhu kabu/Tudu pasa sedu bida empresariu [A droga chegou à Guiné e baralhou-nos o cenário/Senhor alferes e senhor cabo/Todos viraram empresários”] “Amadu ki chefi di izersitu/Iooode/I ka fasi nin 2 dia ki tchiga la/Iooode/I mata Djokin i subi la” [Amadu é chefe do exército/Iooode/Não há dois dias que chegou lá/Iooode/Matou Joaquim e subiu até lá], dizia, já em 2008, o grupo Torres Gémeos, no tema Culpadus.

É também dos Torres Gémeos um tema do mesmo ano recenseado num trabalho em que Miguel de Barros e o também sociólogo luso-cabo verdiano Redy Wilson Lima estudaram as referências a Amílcar Cabral na música de intervenção juvenil na Guiné e em Cabo Verde. Nesse trabalho identificaram, entre outros aspectos, uma crítica de práticas políticas alheias ao pensamento do líder histórico da luta pela independência: (...) disgrasa d’es tera kunsa desdi mortu di Cabral/ chefi di guera matadu/ objetivu di luta mudadu/ en vez di concordia nacional i bin concordia criminal” [(...) a desgraça desta terra começou com a morte de Cabral/ O chefe da guerra foi assassinado/ O objectivo da luta foi mudado/ Ao invés da concordância nacional/ Veio a concordância criminal”.

Denúncia do narcotráfico
Noutro trabalho em que estudaram estas “formas inovadoras de construção de resistências”, Barros e a historiadora Patrícia Godinho identificaram no discurso dos rappers guineenses diferentes narrativas que classificaram de acordo com a sua natureza: da denúncia – de que é exemplo Culpadus, dos Torres Gémeos – da rota do narcotráfico, do protesto, do desassossego e da acção.

Exemplo das narrativas de acção é o que cantaram em 2012 os Kaminhus, no tema As One: “guineensis i sta na hora di no kunsa nota [guineenses está na hora de começarmos a notar]/no disa pa tras tudu ke ku na tudjinu avança [vamos deixar para trás tudo o que não nos permite avançar]. No mesmo tema diz-se também: “Li ki Guine-Bissau pa kin ku ka sibi [aqui é que Guiné-Bissau para quem não sabe]/li ku traficantes ta dadu privilegio mas di ki pursoris di universidade [aqui é que aos traficantes são dados privilégios mais que aos professores universitários]/ juro li te purcu ta pudu gravata i bistidu fatu [juro que aqui os porcos usam gravatas e fatos].

O desassossego do povo vem de há muito e é também há muito cantado. “Notícia di tera obidu ate na rádios internacionais” [notícias da terra foram escutadas até nas rádios internacionais]/ fidjus di Guine ta ianda npinadu é ka ta ossa ianda nin alsa rostu [filhos da Guiné andam cabisbaixo sem coragem para levantarem a cara]”, notavam já em 2007 Cientistas Realistas, no tema “Contra”.

Aliciados e espancados
Nas eleições de 2012, interrompidas pelo golpe de Estado, o fenómeno protagonizado por jovens “perseguidos e algumas vezes espancados” foi aproveitado pelo campo político-militar. Um destacado rapper, Masta Tito, que chegara a ver concertos suspensos, envolveu-se na campanha e cantou ao voto num dos candidatos, Serifo Nhamadjo, actual Presidente interino, nomeado pelo poder saído do golpe. Conta Miguel de Barros que Masta Tito “passou a ter protecção militar” do chefe de Estado Maior General das Forças Armadas, António Indjai.

Mas rapidamente, com uma nova música, “No Kansa golpe”, Masta Tito demarcou-se do derrube do Governo e do candidato que tinha promovido. Regressa à matriz contestatária que lhe vale ser espancado. É a fase em que compõe: “Tudu ora son golpe/ pulítikus kusinha mas golpe/ son golpe /militaris fasi mas golpe [A toda a hora, só golpes (de Estado)/ os políticos cozinharam mais um golpe/ só golpes/ os militares deram outra vez um golpe].

Na campanha para as eleições gerais de hoje, a maioria dos músicos foram, segundo o sociólogo guineense, contratados pela candidatura de Nuno Nabiam. Mas os jovens rappers assumiram um discurso de necessidade de “renovação da classe política” e de “esperança na mudança com novos protagonistas”. Estão com o candidato Paulo Gomes, tal como nomes consagrados da cultura guineense, como o cineasta Flora Gomes ou o cantor Zé Manel Fortes.

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