As escolas superiores de educação e o ministro Nuno Crato

Apenas num sistema educativo em desrespeito por chancelas académicas se pode tolerar a existência de “ratos em cima do telhado e pássaros na cave”.

“Investiguei o melhor que soube e o melhor que pude; e declaro a todos que não o fiz nem por oiro, nem por prata, nem por salário de nenhum príncipe, nem por conta de nenhum homem ou mulher que exista, mas sim, e unicamente,  expor as coisas que aconteceram” (Jacques du Clerc).

“A Associação de Reflexão e Intervenção na Política Educativa das Escolas Superiores de Educação” (ARIPESE) promove nesta sexta-feira, em Coimbra, uma reunião como os presidentes das escolas superiores de educação e do encontro deverá sair um comunicado exigindo a demissão do ministro da Educação e Ciência, Nuno Crato” (PÚBLICO, 27/12/2013).

É natural que o leitor, menos afeito às complexas conjunturas do actual sistema educativo, e suas constantes polémicas, se interrogue sobre o “crime” cometido pelo ministro da tutela da Educação. De forma resumida, ainda segundo a mesma fonte, numa entrevista à RTP1, o ministro da Educação afirmou que “o sistema de formação de professores tem várias falhas, havendo professores licenciados por universidades e professores licenciados por escolas superiores de educação que têm características diferentes e critérios de exigência muito diferentes”.

Perante o aparente e estranho mutismo dos representantes das academias universitárias, agitam-se, febrilmente, os professores e alunos das escolas superiores de educação para que não haja crime sem castigo, arrolando como peso pesado de testemunha de acusação, Rui Matos, presidente da Associação  de Reflexão e Intervenção na Política Educativa das Escolas Superiores de Educação (ARIPESE). Como ultima ratio, e dever de ofício, apela Rui Matos para a intervenção da Agência para Avaliação e Acreditação do Ensino Superior, por, em opinião sua, “o ministro estar a dizer que ‘não confia’ na agência”. Ora, o próprio presidente da referida instituição, contactado pela RTP,  corroborou o facto de “haver pessoas a sair das universidades e politécnicos com uma formação de qualidade duvidosa”.

Entretanto, para não serem lançadas mais achas para uma fogueira de altas labaredas, circunscrevo-me à formação de professores licenciados por escolas superiores de educação oficiais e privadas para o ensino do 2.º ciclo do ensino básico, dando como aval desta minha intervenção numerosos artigos de opinião em que critiquei severamente a formação ministrada  pelas escolas superiores de educação. Julgo, assim, estar credenciado para me tornar parte activa desta discussão sem aparecer como arrivista da última hora para mandar simples "bitaites".

Como ónus de prova, e porque “o tempo passado e o tempo presente fazem todos parte do tempo futuro” (T.S. Elliot),  basta-me apresentar uma breve sinopse sobre a origem e vida das escolas superiores de educação, elaborada  em um dos meus artigos de opinião de que extraio alguns brevíssimos excertos:  

“O hoje chamado ensino superior politécnico (que veio substituir o antigo ensino médio) esteve para se chamar ensino superior curto com a duração apenas de dois anos lectivos. Mas foi sol que não chegou a raiar perante nuvens de contestação. Mobilizando-se, os seus contestatários conseguiram que não fosse avante esta designação e os estabelecimentos do então ensino médio corporizaram uma nova forma de ensino superior com a designação de politécnico.

(…) Destinavam-se, inicialmente, as escolas superiores de educação a formar educadores de infância e professores do 1.º ciclo do ensino básico, substituindo-se aos cursos médios correspondentes. E para que não surjam malévolas interpretações, a minha opinião sobre este assunto vem de longe e não pode oferecer dúvidas porque devidamente registada quando aplaudo com as mãos ambas a respectiva reconversão em escolas superiores de educação, numa perspectiva de evolução dos seus diplomados. Em contrapartida, pateio ruidosamente a involução na preparação dos professores do antigo ensino preparatório, até aqui com formação universitária.

(…) Atinente à formação de professores, que pode aumentar os muitos milhares de diplomados por universidades que se encontram no desemprego, brota, perigosamente, a figura de uma crise social que bateu, anos atrás, à porta da vizinha Espanha que apelidou este escol como ‘desempregados de luxo’, responsabilizando o Governo por esta situação.

Este statu quo mais se agrava em Portugal por se defrontar o país, para além disso, já com um excesso de diplomados para a docência do 2.º ciclo do ensino básico (antigo ensino preparatório) por haver escolas privadas que concedem diplomas de licenciatura para este grau de ensino básico, em cursos com a duração de dois escassos semestres (por vezes nem isso!), a antigos professores primários, numa clara revivescência da Revolução Cultural Chinesa, como se não vivêssemos outros tempos, a nossa superfície territorial fosse igual à do Celeste Império e os problemas educativos se pudessem resolver com agulhas de acupunctura pedagógica” (“Radiografia de uma crise”, Jornal de Notícias, 26/10/96).

Para um melhor esclarecimento do leitor quanto à formação dos professores do 2.º ciclo do ensino básico, ela é ministrada por universidades e escolas superiores de educação. Vejamos, por exemplo, o caso da disciplina de Matemática, que tanto pode ser ensinada por um licenciado universitário em Matemática como por um licenciado por uma escola superior de educação habilitado para ministrar simultaneamente Matemática e Ciências da Natureza, em, apenas, mais um único ano de estudo, depois de obtido o diploma de docente/generalista no ensino do 1.º ciclo do ensino básico das diversas matérias aí ministradas: Português. História, Matemática, Educação Física, etc.

Desta forma, só  porque veritas odium parit se pode pretender sentar o ministro Nuno Crato no banco dos réus por ter  dito que “o sistema de formação de professores tem critérios de exigência muito diferentes”. Ou seja, apenas num sistema educativo em desrespeito por chancelas académicas, por proteger diplomas politécnicos e penalizar diplomas universitários, se pode tolerar a existência de “ratos em cima do telhado e pássaros na cave”, em metáfora colhida de um poeta da pátria de Racine!

Ex-docente dos ensinos secundário e universitário e co-autor do blogue De Rerum Natura 
 
 
 
 

Sugerir correcção
Comentar