Qualquer coisinha “de esquerda”

Reserve as terças-feiras para ler a newsletter de Teresa de Sousa e ficar a par dos temas da actualidade global.

D’Alema era então o líder dos Democratas de Esquerda (hoje parte do Partido Democrático). A cena podia aplicar-se às negociações entre a CDU da chanceler Angela Merkel e os líderes do SPD. Sigmar Gabriel prometeu no Congresso de Leipzig, na semana passada, que só haveria um Governo de “grande coligação” se o programa tivesse uma marca de esquerda. O líder social-democrata sabe que tem de convencer um partido muito céptico quanto às virtualidades da coligação, que ainda vive o trauma de Gerhard Schroeder e das suas reformas, responsabilizando-o pelos desastres eleitorais do partido desde 2005, e que considera que a “grande coligação” de 2005-2009 só beneficiou a CDU da chanceler. “Se votássemos agora, o resultado seria um inequívoco não”, disse ontem ao Financial Times um deputado do SPD. E os 470 mil militantes do SPD vão mesmo votar o acordo de coligação, logo que seja concluído. Os sociais-democratas elegeram duas ou três bandeiras consideradas como indispensáveis para fechar um acordo. A primeira, e mais emblemática, é um salário mínimo nacional (8,5 euros por hora), abdicando, em contrapartida, do aumento dos impostos aos mais ricos. A segunda é a garantia de dupla nacionalidade para os cidadãos de fora da Europa que nasçam em solo alemão e que, na lei actual, teriam de escolher aos 18 anos qual delas preferiam. Se esta última cedência não era muito difícil para a chanceler, a questão do salário mínimo parecia levantar mais resistências.

2. Ontem, finalmente, Merkel disse, perante uma audiência de empresários, que isso iria mesmo acontecer. Já há um salário mínimo estabelecido por sectores e por regiões, que vem desde o tempo de Schroeder. Merkel enfrentou as críticas dos empresários, argumentando pragmaticamente que é o custo da coligação. Mas já teve de ouvir as grandes construtoras de automóveis ameaçar com a deslocalização das suas empresas, se a exigência do SPD vencesse. Hoje, se a economia alemã é tão competitiva e regista um desemprego tão baixo, foi também porque aumentaram acentuadamente as desigualdades sociais e proliferou uma espécie de minijobs mal pagos, que são muitas vezes o recurso dos jovens e dos trabalhadores menos qualificados. Por isso a questão do salário mínimo é importante, e não é nada que não seja normal na maior parte dos países europeus, incluindo no Reino Unido, criado por Tony Blair. Merkel percebeu que teria de ceder aqui. É a “coisa de esquerda” que as bases sociais-democratas exigem. Mas deixa uma enorme interrogação sobre aquilo que verdadeiramente importa para os europeus, ainda pacientemente à espera de saber se a presença do SPD terá alguma influência na política europeia da chanceler.

3. Peer Steinbruck, o candidato social-democrata à chancelaria, fez, durante a campanha eleitoral, duras críticas a Angela Merkel pela sua falta de visão sobre o futuro da Europa, acusando-a de se limitar a apagar os fogos à medida que iam surgindo, e muitas vezes da pior maneira possível. Foi crítico da forma “inumana” com que tratava os seus parceiros do Sul e defendeu uma política um pouco mais expansionista, com o aumento das pensões e dos salários. O SPD partiu para estas negociações ainda com a proposta de criação de um “fundo de redenção” (cuja autoria é dos “cinco sábios” que aconselham o Governo federal), capaz de aliviar o peso da dívida nesses países. Tem uma visão sobre união bancária mais flexível que a da CDU. Assistimos hoje a um braço-de-ferro entre Bruxelas e Berlim na negociação do seu segundo pilar, o mecanismo de resolução dos bancos em má situação (o primeiro, já em marcha, é a supervisão do BCE, e o terceiro é sobre a garantia dos depósitos), que Merkel quer adiar até os bancos tratarem de criar o seu próprio fundo. Mas o ministro das Finanças, Wolfgang Schauble, acabava de avisar que “nem um cêntimo” dos contribuintes alemães irá parar às mãos de um banco falido.

Este silêncio sobre a Europa pode querer dizer que o que verdadeiramente interessa ao SPD é deixar a sua marca na frente interna, cedendo mais facilmente na frente europeia. Os sociais-democratas sabem que a maioria dos alemães apoia a forma como a chanceler está a liderar a Europa desde o início da crise, e talvez prefiram não fazer muitas ondas. Ou, por outras palavras, se o centro-esquerda europeu acreditava que a participação do SPD no Governo alemão poderia ser o começo de um novo caminho, talvez venha a ter a mesma desilusão que teve quando a França elegeu François Hollande para o Eliseu.

Sugerir correcção
Comentar