Uma derrota alemã em Estrasburgo

É essencial distinguir as afirmações de factos das opiniões.

Podermos chamar palhaços aos nossos governantes é, inequivocamente, uma conquista do 25 de Abril. Mas não é uma conquista segura.

No domínio da liberdade de expressão, os conservadorismos e os atavismos ainda – e sempre – podem muito. Ou porque não é educado dizer-se isto e aquilo ou porque se podia dizer de outra maneira “sem ofender” ou, ainda, porque não havia necessidade ou razão para o dizer. Tudo pode servir como justificação para que as inibições, os receios e os preconceitos esmaguem a liberdade.

A grande Alemanha, nossa benfeitora e carrasca, por exemplo, foi no dia 17 condenada pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) por violação da liberdade de expressão a que os seus cidadãos têm direito.

O caso é particularmente interessante porque se prende com uma questão que, muitas vezes, os nossos tribunais têm dificuldade em apreciar: a diferença entre a afirmação de factos ou de opiniões. Quanto aos primeiros, quem os afirma e com eles ofende alguém terá de provar a sua veracidade ou, pelo menos, que os afirmou na convicção séria da sua veracidade. Quanto às opiniões ou juízos de valor, as mesmas não são verdadeiras ou falsas, como é evidente, pelo que quem as afirma só terá de provar que tem algum fundamento factual para ter criado essa opinião ou exprimir esse juízo de valor. No nosso país, por vezes, os tribunais entendem que as opiniões são falsas por não provadas e, daí, condenarem quem as emitiu.

Brosa era um activista que decidiu denunciar a associação Berger-88-e.V., que considerava neonazi, e Heinz, um político local que, na sua opinião, dava cobertura a essa mesma associação. E, assim, entre outras coisas, produziu, por altura de umas eleições autárquicas em que Heinz concorria a presidente da câmara, um panfleto em que afirmava ser a associação Berger-88-e.V. uma organização neonazi particularmente perigosa e aconselhava a não votar em Heinz por dar cobertura à mesma. Heinz recorreu aos tribunais e conseguiu que Brosa fosse proibido de distribuir o panfleto e de o referir como um apoiante de organizações neonazis sob pena de pagar elevadas multas. Para os tribunais alemães, Brosa não tinha conseguido provar que Heinz dera cobertura a uma organização neonazi, tudo o que apresentara em sua defesa eram meras conjecturas e interpretações subjectivas.

Brosa explicara que, como era sabido, a organização em causa tinha o nome “88” em substituição das palavras “Heil Hitler”, sendo o 8 a oitava palavra do alfabeto, que havia diversos membros dessa organização que tinham sido perseguidos criminalmente por actividades ligadas à extrema-direita, que numa festa alguns deles tinham feito saudações nazis e que os serviços secretos alemães mantinham vigilância sobre a organização.

Mas para os tribunais alemães, os direitos de personalidade de Heinz tinham sido violados por Brosa sem fundamento suficiente, já que não provara os factos em causa: que a associação era neonazi e que Heinz lhe dava cobertura como tal, pelo que mantiveram as proibições.

Recorreu Brosa ao TEDH invocando ter sido violado o artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) que consagra a liberdade de expressão europeia, que não é ilimitada mas é bastante consistente e ampla.

Para o TEDH, quando estão em causa figuras públicas em geral e políticos em particular, a possibilidade de os Estados restringirem a liberdade de expressão é muito reduzida. Está-se no cerne da vida em sociedade e para garantir a formação de uma opinião pública pluralista, livre e esclarecida, base de uma sociedade democrática, é essencial garantir a circulação do máximo de opiniões, mesmo que ofensivas ou desagradáveis.

E o TEDH considerou que os tribunais alemães ao analisarem as afirmações de Brosa tinham exigido que uma “prova convincente” (compelling proof) que a Berger-88-e.V. era uma organização neonazi, quando por um lado tal classificação era uma opinião e Brosa tinha produzido elementos suficientes para se poder considerar tal opinião como justificada.

Por outro lado, os tribunais alemães tinham considerado que, com a afirmação de que Heinz dava cobertura à Berger-88-e.V., Brosa tinha afirmado que aquele sabia que a organização era neonazi e a apoiava, ora não era essa a única leitura de tal expressão. Brosa nunca afirmara que Heinz era neonazi, sendo certo que Heinz escrevera uma carta a um jornal em que afirmava serem falsas as afirmações de Brosa e que a Berger-88-e.V. não tinha tendências de extrema-direita. Para o TEDH, a Alemanha falhara nas suas obrigações decorrentes de se ter obrigado a respeitar a liberdade de expressão consagrada no art.º 10.º da CEDH pelo que a condeno a pagar 5683 euros a Brosa a título de despesas e prejuízos morais.

As decisões do TEDH não permitirão o enriquecimento económico dos queixosos, mas constituem uma mais-valia cívica imensa.

Advogado
 

   

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