Rússia avança, Europa e EUA não recuam, mas todos querem "normalizar a situação"

Presidente russo defende legitimidade do referendo de dia 16 na Crimeia e diz que o governo interino de Kiev nada fez para "limitar o comportamento descontrolado de ultranacionalistas e forças radicais na capital e em muitas regiões" da Ucrânia.

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Um marinheiro guarda um navio russo na baía de Sevastopol VIKTOR DRACHEV/AFP

Numa conversa telefónica com a chanceler alemã, Angela Merkel, e com o primeiro-ministro britânico, David Cameron, Putin transmitiu-lhes que "os passos dados pelas autoridades legítimas da Crimeia baseiam-se na lei internacional", incluindo o referendo marcado para o próximo domingo, numa declaração que pode ser interpretada como o carimbo que faltava à sensação de inevitabilidade que nem as ameaças de sanções por parte dos Estados Unidos e da União Europeia conseguiram reverter.

A estratégia de Moscovo é clara e tem sido repetida por todos os responsáveis políticos: se o "governo ilegítimo" de Kiev não trava os ultranacionalistas da extrema-direita, a Rússia tem de pôr ordem nas zonas do território da Ucrânia de maioria russa.

Foi essa a mensagem que Vladimir Putin repetiu na conversa com Merkel (que lidera os mais cautelosos em relação a uma resposta musculada a Moscovo) e a Cameron. O comunicado que o Kremlin enviou aos jornalistas é claro: "O Presidente russo chamou a atenção dos seus interlocutores para a ausência de qualquer medida por parte das actuais autoridades de Kiev no sentido de limitarem o comportamento descontrolado de ultranacionalistas e forças radicais na capital e em muitas regiões" da Ucrânia.

Mas não é nas declarações de desafio às actuais autoridades de Kiev – a quem Moscovo nunca reconheceu legitimidade, por considerar que chegaram ao poder através de um golpe de Estado que derrubou o Presidente Viktor Ianukovich – e aos líderes norte-americanos e europeus que reside a sensação de inevitabilidade da integração da Crimeia na Federação Russa.

Ao mesmo tempo que apoia as forças pró-russas que mandam agora na península (depois de terem assumido o controlo do parlamento regional com a ajuda de homens armados), Vladimir Putin e muitos outros altos responsáveis políticos de Moscovo sublinham que não há nenhuma razão para se falar em conflito. Nem agora, nem no futuro. "Apesar das diferenças na avaliação do que está a acontecer, eles [Putin, Merkel e Cameron] exprimiram o interesse comum em reduzir as tensões e normalizar a situação o mais rapidamente possível", prossegue o comunicado do Kremlin.

Neste domingo, a uma semana de os habitantes da Crimeia serem chamados a decidir se querem integrar imediatamente a Federação Russa ou se preferem esperar mais um pouco (aproveitando, entretanto, uma maior autonomia face a Kiev), não se vê como será possível reduzir tensões e normalizar a situação sem partir do princípio de que a península do Mar Negro irá regressar ao colo da Mãe Rússia.

No terreno, tudo aponta para que a situação só ficará normalizada se o Ocidente aceitar a anexação da Crimeia. De acordo com o Ministério da Defesa do governo interino da Ucrânia, as forças russas afundaram dois navios obsoletos para impedirem a saída da Marinha ucraniana, e mantêm o navio de guerra Moskva a patrulhar a área. A península está sob controlo de homens armados, sem identificação nos uniformes, mas com armamento que não está ao alcance de grupos criados de um dia para o outro, sem um forte apoio.

No sábado, em declarações à agência Reuters, o vice-comandante de uma das bases navais ucranianas na Crimeia, Vadim Filipenko, deixou transparecer que pelo menos uma parte das forças ucranianas pode não estar tão convencida quanto o governo interino de Kiev de que a península permanecerá como parte integrante da Ucrânia. "Não vamos combater. Esperamos que tudo se resolva de forma pacífica. Se a Crimeia for para a Rússia, tudo bem. Iremos servir a Ucrânia noutras áreas", disse o responsável.

Na sexta-feira, depois de ter recebido as autoridades pró-russas da Crimeia, a presidente da câmara alta do Parlamento russo, Valentina Matvienko, reforçou o tom de inevitabilidade e assegurou que a última coisa em que Moscovo está a pensar é numa guerra com a Ucrânia, com os Estados Unidos ou com os países da União Europeia. "Temos de pôr fim a esta linguagem de ameaças e começar a construir um entendimento mútuo, apesar das nossas divergências. (…) Temos uma certeza – nunca haverá uma guerra entre os nossos povos irmãos", disse Valentina Matvienko, citada pela agência russa Ria Novosti. Mas, como a mesma responsável sublinhou (depois de garantir todo o apoio às actuais autoridades da Crimeia, e de lhes prometer que a Rússia abrirá as portas à península se for esse o resultado do referendo de dia 16 de Março), só poderá haver entendimento mútuo com um "um governo eleito legalmente pelo povo ucraniano".

O secretário de Estado norte-americano, John Kerry, já avisou o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, que "quaisquer passos para anexar a Crimeia não deixariam nenhum espaço para a diplomacia", e o governo britânico, pela voz do seu ministro dos Negócios Estrangeiros, William Hague, voltou a insistir na eventualidade da aplicação de "sanções económicas muito duras" a Moscovo, ao mesmo tempo que afastava a hipótese de um conflito armado com a Rússia.

Muitos analistas, como o norte-americano Charles Krauthammer, colunista do The Washington Post, também parecem dar a anexação da Crimeia como um facto quase consumado, em grande parte devido ao que descreve como as fraquezas de um "adversário sem noção do que está em jogo", referindo-se à Administração Obama, mas também aos líderes europeus. "Agora, a Rússia vira as atenções para o resto do Leste e do Sul da Ucrânia. Putin pode anexá-los quando bem entender – se assim o entender. Já desestabilizou o governo nacionalista de Kiev. A Ucrânia foi retalhada e só se mantém viva graças ao dinheiro dos EUA e da Europa – grande parte do qual, para a compra de gás, vai acabar nos cofres de Putin de qualquer forma. (…) Alguma vez Putin se atiraria à Ucrânia se não tivesse um adversário tão sem noção do que está em jogo? Ninguém pode afirmá-lo com toda a certeza. Mas não há dúvidas de que isso facilitou a decisão de Putin."

Sintomática foi também a forma como o vice-chanceler alemão, Sigmar Gabriel, descreveu a postura de Vladimir Putin numa conversa entre ambos, que decorreu na semana passada. Depois de ter alertado o Presidente russo para as consequências de uma possível anexação da Crimeia, Gabriel disse à revista Der Spiegel que Putin recebeu as suas palavras "em tom amigável, mas com firmeza sobre o assunto".

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