Promessa de remodelar governo pode não evitar fim-de-semana de tensão na Ucrânia

Presidente vai remodelar o Governo e rever as leis anti-protestos na próxima semana, mas é mais profunda a mudança que os ucranianos pretendem.

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Kiev transformou-se num campo de batalha num espaço de semanas Vasily Fedosenko/Reuters

E ao fim de uma semana de fortes confrontos nas ruas de Kiev, três mortos oficialmente confirmados – a oposição fala em cinco –, acusações contra a polícia anti-motim, condenação internacional e reuniões intermináveis entre Presidente e oposição, vislumbra-se alguma saída para o caos em que a Ucrânia mergulhou nos últimos dois meses. O Presidente, Viktor Ianukovitch, anunciou estar disposto a remodelar o Governo e a rever as leis que restringem as manifestações. No entanto, a abertura demonstrada pode já não ser suficiente para satisfazer uma rua cada vez mais radicalizada.

Naquela que é a maior indicação da proximidade de um consenso desde o início dos protestos, em Novembro, Ianukovitch anunciou esta sexta-feira que vai proceder a uma remodelação do Governo na sessão legislativa extraordinária, marcada para terça-feira. Para além disso, o Presidente garantiu que as leis anti-protestos, aprovadas na semana passada, vão ser revistas e referiu ainda que quer incluir os líderes dos partidos da oposição numa equipa para contornar a crise vivida pelo país.

Para além das declarações de Ianukovitch, mais nenhum pormenor foi conhecido até ao fim do dia, mas uma questão ficou assente: a demissão do Governo, maior reivindicação dos partidos da oposição, não vai ser debatida. Assim, permanece o receio de que o anúncio de Ianukovitch não seja suficiente para acalmar as ruas, esperando-se um fim-de-semana quente.

Na verdade, o dia ficou marcado pela propagação dos protestos a vários pontos do país, com a ocupação de edifícios governamentais. Em Kiev, um grupo de manifestantes invadiu o Ministério da Agricultura durante a madrugada.

Para além da violência extrema, a semana ficou marcada pelos encontros regulares entre os líderes dos três partidos da oposição – o Udar, o Svoboda (Liberdade) e o Batkivshchina (Pátria) – e Ianukovitch, que se saldaram invariavelmente por decepções para os manifestantes. A imagem de Vitali Klitschko, o ex-pugilista e popular líder do Udar, a ser apupado enquanto relatava o resultado da reunião na quinta-feira aos manifestantes é sintomática da desconfiança que se vai instalando. A mensagem é clara: nada menos que a demissão do Governo e do Presidente irá satisfazer a Praça da Independência.

A Praça da Independência (Maidan) continua a ser apelidada de EuroMaidan pelos comentadores, mas a aproximação à Europa, materializada pela assinatura de um acordo comercial rejeitado por Ianukovitch, foi apenas o início de um protesto muito mais profundo. “Já com muitos dias de protesto, há uma generalização do descontentamento em relação à classe política”, observa a docente de Relações Internacionais da Universidade de Coimbra, Maria Raquel Freire, contactada pelo PÚBLICO. “A resposta violenta das autoridades, ao invés de silenciar a oposição e os manifestantes, tem-lhes conferido maior legitimidade”, acrescenta.

No local onde se situava uma estátua de Lenine, derrubada durante os protestos em Dezembro, esteve afixado um cartaz em que se lia: “Ianukovtich – A seguir és tu.” É precisamente na imagem do Presidente que se concentra tudo aquilo que os manifestantes querem mudar na Ucrânia, como a corrupção, a prepotência e a submissão a Moscovo.

Hooligans de extrema-direita controlam as ruas

Mudaram os objectivos dos manifestantes e mudaram os meios para os atingirem. Nas primeiras semanas, os protestos ressaltavam pelo carácter pacífico e cívico. As multidões juntavam-se de telemóvel iluminado na mão; jovens distribuíam chá quente e café. A imagem, que não é propriamente longínqua, nada tem a ver com o cenário de guerra que tomou conta de Kiev nos últimos dias.

“Muitas pessoas acham inútil ficar na Praça e escutar os líderes a dizer que as nossas armas são tochas.” A explicação é dada à Reuters por um homem na casa dos 50 anos, que se apresenta como Zaliznyak (Homem de Ferro). Faz parte do “Sector Direito”, um grupo recém-formado, constituído por hooligans do futebol, de inspiração nacionalista.

É habitual ver os membros do “Sector Direito” com a cara coberta de capacetes ou máscaras, armados com paus, barras de ferro ou cocktails molotov improvisados. A sua entrada em cena nos protestos coincidiu com a “transferência” do palco dos confrontos da Praça da Independência para a área perto do estádio do Dínamo de Kiev. É lá que estão montadas autênticas barricadas feitas de pneus incendiados e onde ocorreram os confrontos mais sangrentos dos últimos dias.

Apareceram como um grupo marginal mas o aumento da repressão deu-lhes força e conseguiram captar descontentes para as suas fileiras. Apesar da página do grupo na rede social de língua russa Vkontakte ter 100 mil apoiantes, no terreno o “Sector Direito” deverá contar com 300 membros, segundo a Reuters.

Apesar de se desassociarem de qualquer um dos três partidos da oposição – inclusive do Pátria, de extrema-direita –, há uma certa ambivalência nas relações entre si. Antes do aparecimento do movimento os protestos tinham perdido algum do fulgor anterior, o que acabou por jogar a favor da oposição. No entanto, nenhum partido se quer ver associado a um grupo conhecido pelas tácticas violentas. Raquel Freire considera que os grupos violentos “não representam a vontade da maior parte dos manifestantes”, advertindo que juntar a violência às reivindicações democráticas “pode deslegitimar os processos.”

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