Com os jihadistas às portas de Bagdad, primeiro-ministro agarra-se ao poder

O xiita Nouri al-Maliki denuncia um “golpe contra a constituição” e não cede às pressões dos EUA para formar um executivo com sunitas e curdos e travar a guerra.

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Voluntários xiitas recém-fardados em trino militar HAIDAR MOHAMMED ALI/AFP

O primeiro-ministro iraquiano, Nouri al-Maliki, rejeitou todos os apelos – nacionais e internacionais – para a constituição de um Governo de salvação nacional, representativo das diferentes facções étnicas e religiosas do país, e recusou sair de cena no âmbito do que descreveu como um “golpe contra a Constituição”.

Com a unidade territorial em risco e as instituições políticas à beira da desintegração, Nouri al-Maliki fez uma declaração ao país, onde recordou que o processo de transição democrática e de constituição de um novo executivo está em curso, na sequência das eleições legislativas realizadas em Abril. Alterar ou inverter esse processo, considerou, corresponde a agir contra a lei fundamental do país: “É uma tentativa de pôr fim à experiência democrática no Iraque”, notou.

O político xiita, acusado de uma governação sectária e autoritária durante os oito anos em que esteve à frente do executivo, referiu-se vagamente à necessidade de “reconciliação das diferentes forças políticas”, pedindo aos líderes partidários para cerrar fileiras no combate aos militantes do Estado Islâmico do Iraque e Levante (ISIS), uma guerrilha fundamentalista nascida da Al-Qaeda e que controla agora largas áreas do país.

A insurreição do ISIS foi ganhando força com o apoio declarado de dirigentes sunitas e antigos quadros do partido Baas de Saddam Hussein: a fragmentação do país nas últimas duas semanas não é só por causa da campanha militar dos extremistas em direcção a Bagdad, onde a crise política se manifestou muito antes. Al-Maliki está agora a pagar o preço da exclusão da minoria sunita da governação (e, já agora, da negociação de um governo regional semi-autónomo com os curdos).

Sem aliados políticos além da sua coligação xiita, que ganhou uma nova maioria parlamentar na votação de 30 de Abril, não admira que as palavras de Nouri al-Maliki não tenham surtido qualquer efeito. O primeiro-ministro interpretou essa vitória eleitoral como um novo mandato político para prosseguir as suas políticas, mas com o país mergulhado na pior violência sectária desde 2006, já não é só a sua legitimidade política que está em causa, é a própria autoridade do Estado.

Com o caos instalado no país, o Exército concentra-se na defesa da capital. As investidas do ISIS começam a antecipar uma batalha sangrenta pelo controlo de Bagdad: ontem, as forças rebeldes encontravam-se a apenas 80 quilómetros, e batiam-se pelo controlo da base aérea de al-Bakr (que durante a ocupação norte-americana era conhecida como “Camp Anaconda”). Incapazes de lançar uma contra-ofensiva terrestre, as Forças Armadas iraquianas têm sido obrigadas a ripostar por via aérea aos avanços dos rebeldes.

O porta-voz do Exército, general Qassim Atta, anunciou o fim da batalha pela refinaria de Baiji e a recuperação daquela localidade pelas forças nacionais. O canal estatal de televisão exibiu imagens do ataque a Baiji com helicópteros e aviões militares, e referiu-se à morte de 19 terroristas que, de acordo com testemunhas citadas pela BBC, seriam residentes civis.

Pelo seu lado, as forças do ISIS e militantes sunitas da província de Anbar informaram do sucesso de um raide com morteiros e bombas sobre a cidade de Ramadi. Através do Twitter, os militantes disseram ter atingido uma base militar e vários postos da polícia, bem como os refúgios das milícias Safadi, que é como se referem aos combatentes xiitas que se voluntariaram para combater ao lado das tropas iraquianas.

Americanos já estão em Bagdad

Os 130 conselheiros militares enviados pelos Estados Unidos para colaborar com o Exército nacional, e que ontem assumiram posições no aparelho de segurança iraquiano, “estão em condições” de solicitar ataques aéreos em caso de necessidade, como lembrava a imprensa internacional. Mas esse é um trunfo que Washington não pretende usar enquanto não estiver esgotado o diálogo político.

O secretário de Estado norte-americano, John Kerry, viajou para Bruxelas para discutir a crise iraquiana com os seus parceiros da Nato. Antes, o governante manteve contactos com a Arábia Saudita, vindo do Iraque, onde esteve reunido com o primeiro-ministro e também com o chefe do governo regional do Curdistão, Massoud Barzani – os Estados Unidos não pediram explicitamente a demissão de al-Maliki, mas defenderam a formação de um Governo de unidade nacional encabeçado por uma figura capaz de promover a reconciliação.

No seu discurso televisivo, al-Maliki assinalou os “perigos escondidos” nessa solução. “O objectivo daqueles que desejam um Governo de salvação nacional é muito evidente: é eliminar a Constituição e roubar os votos dos eleitores”, declarou. O primeiro-ministro insistiu que respeitará os “mecanismos constitucionais” e repetiu o seu compromisso de apresentar uma nova “coligação governativa” até ao dia 1 de Julho. Mas não abriu o jogo quanto à sua eventual composição, nomeadamente se contemplava a distribuição de cargos por políticos de diferentes etnias.

“Já usamos a palavra crise muitas vezes para descrever a situação no Iraque, mas desta vez não é um exagero”, desabafou um diplomata ocidental citado pelo diário britânico Daily Telegraph. "Os políticos iraquianos estão conscientes dos problemas e dos desafios, mas até agora isso não se traduziu em acção. Não é só a existência do Iraque enquanto Estado que está em perigo, é toda a região”, observou.

 

 

 

 


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