Porque adiam os ingleses a notificação do “Brexit”?

A última coisa que os britânicos gostariam é que a sua União de quatro países, consubstanciada no Reino Unido da Grã Bretanha e da Irlanda do Norte, sucumbisse à saída da União Europeia.

1. Se a resposta dos britânicos ao referendo sobre a saída da União Europeia tivesse sido no sentido da manutenção, é bem provável que o futuro da União passasse pela consagração definitiva de uma Europa a duas velocidades. O que teria sido um momento marcante de clarificação do rumo constitucional da União. Estabelecer-se-ia assim uma Europa com dois clubes: um de maior espectro, que abrangeria todos os Estados, essencialmente ligado ao mercado único e virtualmente liderado pelo Reino Unido; o outro, mais restrito mas englobado pelo primeiro, de aspiração notoriamente federal, liderado pela Alemanha e pela França. O acesso dos países do círculo do mercado único ao núcleo “mais avançado” estaria sempre garantido, desde que aqueles países cumprissem os respectivos requisitos. E, por outro lado, o eventual “retrocesso” de um país – saída do “núcleo duro” (designadamente, motivado por uma “necessidade” de saída da moeda única, se vista como mutuamente benéfica) – passaria a ser eventualmente possível e a ter um enquadramento próprio que não implicaria o abandono da União nem uma “saída caótica e desorganizada”. Eis algo que poderia vir a ocorrer ou não, se o Reino Unido quisesse continuar na União com o estatuto especial provindo das negociações de Fevereiro.

2. Com a vitória dos adeptos do “Brexit”, a complexidade da evolução interna da União e dos 27 Estados remanescentes aumenta. Por um lado, não está excluído que mais alguns Estados queiram referendar a prazo a sua permanência. Por outro lado, e com a flexibilidade das cooperações reforçadas – que, em si é positiva, mas que amplifica as possibilidades de diferenciação e especificação do estatuto de cada Estado-membro –, a União Europeia corre o risco de se tornar cada vez mais assimétrica. No limite, e fazendo lembrar o magma constitucional das comunidades políticas da Idade Média, pode vir a tornar-se numa União em que cada Estado tem um catálogo de prerrogativas e de obrigações próprio, em que nenhum tem exactamente o estatuto do outro. Seria a hipótese um dia aventada por Medeiros Ferreira de uma reedição pós-moderna do Sacro-Império Romano Germânico, com a sua enorme teia de lealdades e fidelidades, de suseranias e vassalagens, de zonas francas e de livre comércio, em que o Imperador (e o centro político que ele representava) não passava de um primus inter pares, munido basicamente de poderes protocolares. Esta hipótese de uma deriva em direcção à erosão constitucional progressiva não deve de todo excluir-se.

3.  Uma das razões que leva a Inglaterra a tanta calma, preguiça e cálculo na activação da notificação do agora célebre art.º 50.º vem a ser justamente a incógnita sobre o desenvolvimento interno da União e, em particular do seu “núcleo duro” – afirmado na partilha da moeda comum e do espaço Schengen. Escrevo a Inglaterra, e não o Reino Unido, deliberadamente, por causa da outra razão que explica esta moratória e a que irei no final. A Inglaterra sabe que 2017 será ano de eleições legislativas na Alemanha e de eleições presidenciais na França. Sabe que só nessa altura terá em mãos os exactos termos da equação de saída. Ciente de que o nó górdio das negociações será sempre a liberdade de circulação de pessoas, confia numa mudança de posição dos principais Estados da União no quadro destas disputas eleitorais. Na verdade, os partidos centrais em França estão sob ameaça do sucesso da Frente Nacional e de Marine Le Pen, agora muito reforçados pela crise dos refugiados e pela vaga terrorista em curso. E o mesmo se diga dos partidos centrais na Alemanha, hoje visados pela chamada AfD – Alternativa para a Alemanha, liderada por Frauke Petry –, também largamente fortalecida pela posição de Merkel na crise dos refugiados e pelos recentes ataques terroristas. Ou seja, é bem possível que os partidos tradicionais venham a abandonar posições mais “generosas” para mais facilmente competirem com as forças populistas. E assim poderão quiçá traçar um caminho de convergência com o interesse inglês, facilitando o acesso ao “máximo de mercado único” com o mínimo de “liberdade de circulação de pessoas”. Se isto não for concedido pelos Estados mais fortes, em resultado do seu próprio devir eleitoral, pode ser facilitado por desenvolvimentos como os do referendo húngaro ou das presidenciais austríacas; pelas eleições holandesas ou pelas sequelas do referendo italiano. Se um país como a Grécia pôde tornar cativa a zona euro da sua evolução política doméstica, a verdade é que a vida e a sorte política de muitos outros Estados poderão nos próximos meses e anos alterar alguns dogmas da União. Percebendo este permanente borbulhar interno dos restantes Estados da União e os caminhos que ele abre para novas pistas de solução, a Inglaterra tem todo o interesse em adiar, em protelar, em ganhar tempo, em esperar para ver. Wait and see – é por agora a palavra de ordem.

4. A segunda razão é do foro interno – melhor, é mesmo do foro íntimo – da Inglaterra. A última coisa que os britânicos gostariam é que a sua União de quatro países, consubstanciada no Reino Unido da Grã Bretanha e da Irlanda do Norte, sucumbisse à saída da União Europeia. Mas com o Reino dividido em dois, com duas nações para um lado e duas nações para o outro, o risco de secessão é enorme. Os ingleses precisam de tempo para desenhar uma solução original em que possam aquietar e pacificar as ansiedades e as tensões de escoceses e de norte-irlandeses. Para isso contarão com aliados. A Espanha, a Bélgica e a Itália – e mais uns quantos a leste –, por muito que não gostem do “Brexit”, gostarão ainda menos de uma dissolução do Reino Unido. Esta teria efeitos imediatos na situação constitucional destes países, despertando todos os demónios independentistas. Os ingleses precisam de tempo e de engenho para o desafio mais difícil: não fazer da Escócia o terceiro membro europeu da Commonwealth. Depois de Malta e depois de Chipre.

Eurodeputado (PSD), paulo.rangel@europarl.europa.eu

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