Por um tribunal permanente para a Parceria Atlântica

A parceria transatlântica ganharia muito em ser capaz de se dotar de instituições próprias, acima de toda a suspeita.

1. Já aqui tratei por várias vezes da parceria transatlântica de comércio e de investimento – conhecida pela sigla inglesa TTIP – entre a União Europeia e os Estados Unidos (lembro, neste espaço, os artigos de 1 de Abril e de 15 de Julho de 2014). Não é preciso encarecer a importância decisiva que este acordo de livre comércio – que é e pode ser mais do que isso – tem para uma reconfiguração da globalização e, em particular, do peso que o bloco ocidental e os seus valores têm no dinamismo económico mundial.

O respeito pela decência das condições laborais, ambientais, de saúde pública e de protecção do consumidor, bem como pelos padrões da rule of law, em termos globais, só se afirmarão se uma parceria desta natureza for para diante. A própria consistência política do bloco ocidental – aí incluídos o Canadá e toda a América Latina – depende, a prazo, deste avanço de integração económica. O olhar atlântico dos Estados Unidos e de todo o continente americano e o desenvolvimento futuro da África atlântica dependem em muito deste salto geo-económico. Riscos importantes como o actual risco grego, o perigo russo ou a incógnita turca passam pelo reforço da solidariedade atlântica. Mais importante – como ontem, com subtileza e ironia e sem nunca o afirmar, sublinhava Ferreira Fernandes – a defesa contra a maior ameaça do nosso tempo (o Estado Islâmico) também passa por este vector geoestratégico. Joga-se, pois, muito mais do que simples números, quebras de barreiras alfandegárias (já não muito expressivas) ou remoção de obstáculos de toda à sorte ao comércio (estes largamente subsistentes). 

2. Hoje – na semana que o plenário do Parlamento Europeu dedica ao TTIP – queria, porém, tocar num vector específico que me interessa directamente por responsabilidades políticas na Comissão de Assuntos Constitucionais e por formação profissional e académica: o mecanismo de resolução dos litígios que ocorram entre investidores e o Estado no quadro daquele tratado.

Desde finais dos anos 60, quase todos os tratados de investimento, bilaterais ou regionais, prevêem como mecanismo de resolução o chamado ISDS (sigla inglesa de Investor-to-State Dispute Settlement). Com efeito, o ISDS encontra-se previsto em mais de 3000 tratados internacionais de investimento e a UE e os respectivos Estados-membros são partes de cerca de 1400 tratados com tal cláusula. O ISDS é um instrumento de direito internacional público que garante aos investidores o recurso à arbitragem internacional contra o Estado de acolhimento (isto é, o Estado onde é feito o investimento) sempre que entendam que uma qualquer medida violou as cláusulas de protecção do investimento previstas no tratado em jogo.

3. O recurso ao ISDS e à ideia de criação de tribunais arbitrais ad hoc – isto é, instituídos especificamente para cada conflito – que ele sugere e permite têm vindo a suscitar críticas crescentes e mesmo denúncias de tratados há muito em vigor (por exemplo, por parte do Equador, da África do Sul ou à renúncia ao emprego futuro da cláusula pela Austrália). Seja porque o julgamento dos litígios feito em função do caso origina muitas disparidades e faculta grande liberdade de actuação aos juízes árbitros, seja porque põe em crise a ideia de independência e imparcialidade dos árbitros escolhidos, seja porque se criou a noção (desmentida pelos números) de que os grandes investidores (as “grandes multinacionais”) levavam vantagem sobre os Estados neste sistema de composição de conflitos. Sem dúvida, o recurso ao ISDS no quadro TTIP – advogado pela Comissão – tornou-se um dos focos principais de clivagem entre os parlamentares europeus.

4. É justo reconhecer que a Comissão temperou muito a sua proposta e que a rodeou de enormes cautelas de forma a eliminar ou a minimizar muitos dos defeitos hoje tão amplamente atribuídos ao mecanismo convencional do ISDS. De registar, entre muitas outras garantias, que representam um autêntico progresso e aperfeiçoamento do mecanismo tradicional, a vontade de criar um mecanismo de apelação, para o qual se pudesse, em certas circunstâncias, recorrer da decisão do tribunal arbitral. E é justo também dizer que, em muitas situações, as partes recorrem já ao Banco Mundial (ao ICSID) ou, menos, ao Regulamento Arbitral da UNCITRAL (no quadro da ONU). Ou seja, as partes aceitam e procuram práticas e regras institucionalizadas e harmonizadas, já existentes no quadro da regulação global do comércio, para minorarem os riscos de “abordagens casuísticas”.

Neste exacto momento em que escrevo e perante a miríade de emendas e de posições expressas por grupos parlamentares europeus e por deputados singulares, é impossível prognosticar qual será o teor da solução que sairá do relatório a aprovar pelo Parlamento de Estrasburgo.

5. Seja como for, e por mim – que também contribuí activamente, seja em sede de Comissão de Assuntos Constitucionais, seja fazendo propostas directas na resolução, para a miríade de emendas –, a melhor solução seria o abandono do ISDS. Aceitando sem rebuço que a Comissão melhorou muito as garantias do processo, penso que a parceria transatlântica ganharia muito em ser capaz de se dotar de instituições próprias, acima de toda a suspeita. Os tribunais nacionais – em matérias que podem tanger a interesses cardiais do Estado –, mesmo em países muito desenvolvidos, podem sempre sofrer o labéu da suspeita. E os tribunais arbitrais ad hoc – como se vê pelo frenesim que em volta do ISDS – já dele não se livram. Criar um tribunal próprio do TTIP, com juízes solidamente formados e recrutados para aquele fim, seria inscrever a parceria nas tábuas ou nas pedras da lei, dando-lhe um arcaboiço protoconstitucional. Ou, então, mais modestamente, institucionalizar um tribunal arbitral permanente do TTIP que desse todas as garantias e apaziguasse todas as ansiedades de Estados, investidores e cidadãos.

Deputado europeu (PSD), paulo.rangel@europarl.europa.eu

Sugerir correcção
Ler 6 comentários