Ambiguidade das perguntas para o referendo catalão criticada em várias frentes

Enquanto o Governo de Madrid promete que jamais se realizará a consulta popular, analistas sublinham a ambiguidade de conceitos do que os independentistas querem perguntar aos eleitores

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Participantes na manifestação do dia nacional da Catalunha, 11 de Setembr JOSEP LAGO/AFP

O Governo Regional da Catalunha está a estudar, com exemplos da Suíça, como fazer um censo eleitoral próprio, sem usar os meios do Estado espanhol, a tempo de realizar o referendo sobre a independência, marcado na quinta-feira pelo presidente da Generalitat para 9 de Novembro de 2014, sem acordo do Governo de Madrid.

Em reacção ao anúncio de Artur Mas, o presidente da Generalitat catalã, houve até quem invocasse a necessidade de usar o artigo 155 da Constituição, que permitiria suspender uma autonomia, se esta “não cumprir as obrigações que a Constituição e outras leis lhe impuserem".

Mas não foi exactamente uma surpresa. Havia um compromisso entre partidos pró-independência, após as grandes manifestações do dia nacional da Catalunha (11 de Setembro) de 2013 e 2012, de acabar este ano com uma pergunta para o referendo e uma data marcada para o fazer, escreveu o politógo Joan Subirats no jornal El País. Mas não era garantido que os partidos conseguissem chegar a um consenso. “Dadas as contradições internas, era possível imaginar um desenlace vergonhoso”.

Sempre o conseguiram, reunindo o apoio de 87 deputados dos 135 que constituem o parlamento catalão – uma maioria próxima dos dois terços, em que pontuam os nacionalistas da coligação conservadora no poder, Convergência e União, bem como os republicanos da Esquerda Unida. O Partido Socialista da Catalunha e outros federalistas ficaram de fora. Mas as críticas não se fizeram esperar.

Antes de mais, sobre a própria formulação das perguntas do referendo, por sofrerem de falta de clareza. São duas: a primeira é “Quer que a Catalunha seja um Estado?”, a que se segue, se responder afirmativamente à primeira: “Quer que a Catalunha seja um Estado independente?”

É bem diferente da pergunta a que deverão responder os escoceses no seu referendo sobre a independência, a 18 de Setembro de 2014, sublinha o correspondente em Londres do El País. A questão é simplesmente “A Escócia deve ser um país independente?” A escolha da pergunta resultou de um acordo entre o governo escocês e o Governo britânico de David Cameron – não foi feita à revelia, como a catalã – e é apenas uma, escolhida e testada para ser tão neutra quanto possível.

“A fórmula [catalã] evita diversos obstáculos”, analisa Joan Subirats. “Incorpora a ideia de ‘Estado’, incorpora ‘independência’, evita ‘Europa’. Ou seja, permite que todos estejam juntos, e permite a todos dizer que ‘o seu interesse’ também está lá”.

O historiador Joan B. Culla i Clarà centra a sua crítica, também no El País, no uso do conceito de “Estado próprio”, que considera “uma flatulência retórica que não significa nada”. “Eu teria pedido uma posição acerca de um Estado soberano”, afirma, num enfrentamento “ao fundamentalismo constitucional espanhol (segundo o qual ‘a soberania nacional reside no povo espanhol’ e não há mais nada para falar nem para matizar)”.

O receio dos defensores da independência catalã em formular esse conceito produziu esta fórmula dupla e encadeada, sem se falar num Estado soberano, muito criticada nos jornais espanhóis. “Em minha modesta opinião, seria muito preferível ter 60% de ‘sins’ para a soberania, do que uns 60% de ‘sins’ para a independência”, declara o historiador.

O desafio catalão enfrenta de facto um dos fundamentos da Constituição pós-ditadura franquista, que concedeu uma larga autonomia às 17 regiões espanholas, algo que foi um símbolo forte do regresso da democracia. É essa Constituição que o presidente do Governo, Mariano Rajoy, ergue hoje contra os desejos de maior autonomia ou até independência que se tornaram cada vez mais sonoros na Catalunha, desde que o seu novo estatuto autonómico alargado, aprovado pelo parlamento regional em 2006, foi rejeitado na sua forma original pelo Tribunal Constitucional, que em 2010 suprimiu alguns dos seus artigos.

“Quero dizer-lhes com toda a clareza que esta consulta é inconstitucional e não se vai realizar. O Governo não pode negociar sobre algo que é propriedade dos espanhóis, a soberania. Garanto que esta consulta não se celebrará. Isso está fora de toda a discussão e negociação”, afirmou Rajoy, em Bruxelas.

Ao lado de Rajoy estava o presidente do Conselho Europeu, Herman Van Rompuy, que contribuiu, esclarecendo que uma nova Catalunha independente ficaria de fora da União Europeia. “Um novo Estado independente seria um país terceiro em relação à UE e aos tratados, que desde o dia da sua independência deixariam de se aplicar no seu território. Teria de pedir a adesão e todos, repito, todos os Estados-membros da UE teriam de aceitá-la. Espero que Espanha continue a ser um país unido”, afirmou. Acrescentou um toque pessoal, como belga, um país de várias comunidades linguísticas, onde os nacionalismos clamam também pela independência: “Durante toda a minha carreira fui contra as separações dos países”. 
 
 

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