Parlamento da Irlanda aprova alteração histórica à lei do aborto

É um conjunto limitado de mudanças, incluindo o risco de suicídio como motivo para a interrupção da gravidez. Mas provocou danos irreparáveis no Governo.

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As discussões no Parlamento têm sido acompanhadas por manifestações nas ruas Cathal McNaughton/Reuters

O Parlamento da Irlanda aprovou na madrugada desta sexta-feira uma alteração histórica à lei do aborto, para permitir a interrupção da gravidez num número muito limitado de situações, incluindo o risco de suicídio da grávida.

A proposta em causa – a Lei da Protecção da Vida Durante a Gravidez de 2013 – recolheu o apoio da maioria dos deputados (127 contra 31), mas a sua discussão provocou danos irreparáveis no Governo e suscitou posições extremadas na sociedade, como é hábito no país quando este tema é discutido.

A ministra responsável pelos assuntos europeus, Lucinda Creighton, tem sido uma das vozes mais activas contra a aprovação das alterações à lei, enfrentando a direcção do seu próprio partido e o primeiro-ministro. O seu voto contra valeu-lhe a expulsão do partido e deverá agora sair Governo, devido à quebra da disciplina de voto.

"A legislação pode ser reversível, mas as consequências da legislação não são reversíveis. Vão mudar a cultura deste país", declarou a ministra durante as discussões no Dáil, a câmara baixa do Parlamento irlandês, que se arrastaram por mais de 24, repartidas por duas sessões. Até à madrugada de quinta-feira, os deputados apenas tinham discutido e votado 11 das 166 emendas propostas, pelo que a sessão foi retomada ao fim da tarde de ontem.

Para além da minoria de direita que votou contra porque considera que as alterações são muito radicais, há também uma outra minoria que votou contra porque pretende ir mais além. Na esquerda parlamentar, um grupo de deputados independentes lembrou que o aborto vai continuar a ser crime. "O aborto vai continuar a ser crime de acordo com esta lei, com a ameaça de uma sentença de 14 anos [de cadeia] para as mulheres e para os seus médicos – incluindo mulheres que tomem pílulas para abortar. Em conjunto com a nova exigência feita aos médicos e aos hospitais para que justifiquem as suas decisões para o fim de uma gravidez, isto vai colocar pressão sobre os médicos para adiarem os procedimentos até que não possa haver nenhuma dúvida de que a vida da mulher está em risco – e nessa altura pode já ser tarde de mais", disse Joan Collins, da Esquerda Unida.

Uma das emendas mais contestadas pelos activistas anti-aborto é a que diz respeito à possibilidade de interrupção da gravidez no caso de haver risco de suicídio da mulher. Esta alteração vai ao encontro de uma decisão do Supremo Tribunal irlandês de 1992, que nunca chegou a ser posta em lei. Nesse ano, o Supremo decidiu que uma adolescente de 14 anos de idade, vítima de violação, tinha o direito a interromper a gravidez devido a riscos para a sua vida, incluindo a possibilidade de suicídio. Nos últimos 21 anos, desde essa decisão do Supremo, o Governo do Fine Gael, liderado por Enda Kelly, foi o primeiro a tentar a aprovação de uma nova lei sobre o aborto.

A lei actual tem levado a vários casos de indecisão entre os médicos do país, que receiam poder vir a ser julgados e condenados. Segundo a nova proposta de lei, a decisão sobre o que constitui risco de vida para a mulher fica a cargo de um painel de três médicos, que terão de chegar a um veredicto unânime.

Apesar de introduzir alterações consideradas mínimas pelos padrões de outros países da União Europeia, as emendas à lei do aborto na República da Irlanda são vistas como uma afronta à Igreja Católica local e têm suscitado reacções extremadas pelos defensores da lei actual contra o primeiro-ministro, do Fine Gael, um partido essencialmente cristão, de centro-direita.

"Já fui rotulado de assassino, já me disseram que vou ter na minha consciência a morte de 20 milhões de bebés. Já me enviaram fetos de plástico, cartas escritas com sangue. (...) Quero dizer com clareza que todas as pessoas neste país têm o direito de manifestar a sua opinião, mas a minha função como taoiseach [chefe do Governo da República da Irlanda] é governar para o povo do nosso país. E isso não se limita a nenhum sector do povo. Tenho orgulho em estar aqui como representante público, como um taoiseach que por acaso é católico, mas que não é um taoiseach católico. Sou o taoiseach de todas as pessoas, é essa a minha função", declarou Enda Kenny na câmara baixa do Parlamento, em defesa da aprovação das alterações à lei do aborto.

A questão do aborto voltou a ser amplamente discutida no país após o caso de Savita Halappanavar, a dentista indiana que morreu no dia 28 de Outubro, uma semana depois de ter dado entrada no hospital com fortes dores nas costas. Vista por um médico, foi-lhe dito que não seria possível levar a gravidez até ao fim, mas disseram-lhe que nada podiam fazer enquanto houvesse batimento cardíaco. O seu estado de saúde agravou-se nas horas seguintes. Tinha vómitos e febre. Desmaiou quando se levantou para ir à casa de banho. Preocupados, os médicos retiraram-lhe sangue para análise, mas só fizeram o aborto ao terceiro dia, depois de confirmarem que o coração do feto parara. Savita saiu consciente do bloco operatório, mas horas depois seria transferida para a unidade de cuidados intensivos, onde acabaria por morrer três dias depois. A autópsia revelou que não resistira a uma septicémia.

Depois de garantida a aprovação na câmara baixa do Parlamento, a nova lei seguirá para a câmara alta, o Seanad, onde também deverá ser aprovada. A etapa final será a promulgação pelo Presidente da Irlanda, Michael Daniel Higgins. O Governo pretende que a nova lei entre em vigor antes da paragem dos trabalhos do Parlamento para férias, no dia 18 de Julho.

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