O ricochete inglês (da Europa para a Escócia)

Se alguém defende vigorosamente, por horror ao centralismo e à ineficiência, que o Reino Unido deve sair da União Europeia, porque é que não há-de admitir-se que a Escócia abandone o Reino Unido e volte ao trilho histórico da independência?

1. De há muito que, nestas linhas, se fala da questão escocesa e do referendo que entretanto terá lugar. E obviamente, qualquer que seja o resultado, das suas repercussões sobre a questão catalã, basca, flamenga e do norte de Itália. E bem assim das inúmeras dificuldades que uma eventual acessão da Escócia à independência trará à União Europeia.

De tudo isso se tem aqui falado, sempre na pressuposição de que, ao invés do que muitos julgam ou julgavam, uma vitória do “sim” é plausível. E sendo plausível, cabe à União e aos seus Estados-membros ter preparada uma reacção e uma doutrina. Cabe, aliás, em especial ao Estado português, que pode ser directamente afectado por mudanças ou convulsões na geopolítica peninsular, ter uma estratégia séria sobre os vários cenários possíveis e a respectiva evolução. A verdade é que, seja por cá, seja lá fora, pouco atenção se tem dado ao assunto.

2. O caso mudou de figura no fim de semana que passou, porque apareceram sondagens que dão uma vitória ao “sim” à independência ou que, pelo menos, apertaram, e muito, a anterior diferença entre o “não” e o “sim”. Devo dizer que, embora nunca tenha afastado e não afaste um prognóstico de vencimento do “sim”, estimo que o “não” acabará por ganhar. Um pouco como aconteceu no último referendo sobre a independência do Quebeque, o fôlego final do “sim” pode provocar um toque a rebate dos adeptos no “não” e desembocar numa vitória pouco folgada do “não”. Trata-se, como é óbvio, de uma simples intuição…

3. Interessa-me, no entanto e de sobremaneira, esta agitação dos partidários do “não” que, de repente, entraram em pânico e tomaram consciência de que a possibilidade de secessão era uma realidade e não uma simples quimera. A comoção gerada pelas sondagens foi tal que o Ministro das Finanças de Cameron veio prometer uma ampla devolução de poderes em matéria fiscal e orçamental no caso do “não” ganhar”. E de um modo oficioso, rompendo a tradicional discrição e comedimento – de resto, impostos pela constituição –, a própria casa real britânica deixou passar para os jornais um grande incómodo e desconforto com uma eventual vitória do “sim”.

E interessa-me de sobremaneira a reacção dos partidários do “não”, porque grande parte deles andou, anos a fio, e anda – agora mais do que nunca – a investir na ideia de que o Reino Unido devia deixar de fazer parte da União Europeia ou devia, no mínimo, exigir uma amplíssima devolução de poderes de Bruxelas para Londres.

4. Concentremo-nos então no que interessa. Aquilo que muitos políticos britânicos parecem não ter percebido, ao longo destas décadas, é que os argumentos que usam para atacar a União Europeia podem ser usados, com maioria de razão, para atacar o Reino Unido. Se o Reino Unido acha que Bruxelas – que tem uma ínfima parte do poder e do orçamento (em percentagem do PIB) de qualquer Estado – é centralista, o que achará a Escócia de Londres e de Westminster? Ou haverá alguém que alvitre que o Estado britânico é menos centralizado, menos centralista e menos consumidor de recursos do que são as instituições europeias no seu conjunto? Os habitantes de Glasgow ou de Edimburgo podem decerto queixar-se tanto ou mais de Downing Street ou de Westminster do que os cidadãos de Londres ou de Liverpool se queixam do Berlaymont ou da Praça Luxemburgo..

Em poucas palavras, nestes dias amargos e de grande incerteza, os políticos do “establishment” britânico estão a provar do seu próprio veneno. É bem caso para se dizer que o feitiço se virou contra o feiticeiro. Na velha Albion, o poder mediático e o poder político tanto usaram e abusaram de argumentos populistas e fáceis que agora correm o risco iminente de serem vítimas deles. Aquilo que muitos responsáveis britânicos esqueceram – tal é o grau de centralismo que cultivaram – é que o Reino Unido também era uma União. E esqueceram que o uso de argumentos fáceis e redutores tem a configuração ambígua das facas de dois gumes, que cortam para fora, mas também cortam para dentro.

5. Na querela escocesa, Cameron e o Partido Conservador, mas seguramente uma parte importante do establishment britânico (aí incluído o mediático), são vítimas da sua própria retórica. Não se cura, aliás, de caso único, este do efeito de ricochete ou da arte de boomerang do discurso europeu de líderes políticos nacionais. Também os sequazes mais fundamentalistas de Angela Merkel, na Alemanha, começaram já a sofrer refracções do seu discurso populista acerca da Europa. Quando muitos políticos alemães deixam, de um modo demagógico e simplista, passar a ideia de que a Alemanha não pode nem deve a pagar dívidas alheias, olvidam a dinâmica interna da federação germânica. E hoje, é já comum ouvir gente – e gente com responsabilidade – dizer que os Estados federados do sul da Alemanha (a Baviera e o Baden-Würtenberg), por sinal os mais ricos, não estão dispostos a continuar a sustentar a dívida e até a falência de alguns dos Estados federados do Norte ou do Leste. A prazo um certo discurso europeu na Alemanha pode insuflar tensões internas e forçar algum rearranjo orçamental da Federação… Há políticos que parecem olvidar que, quando falam na frente europeia, também são escutados pelo seu eleitorado nacional – eleitorado que não é uniforme nem constitui uma amálgama e, por vezes, até integra comunidades com identidade e autonomia…

6. Mas afinal qual é o espanto? Para argumento fácil, retalie-se com “fácil e meio”. Se alguém defende vigorosamente, por horror ao centralismo e à ineficiência, que o Reino Unido deve sair da União Europeia, porque é que não há-de admitir-se que, por igual horror ao centralismo e por amor ao dinheiro do petróleo, a Escócia abandone o Reino Unido e volte ao trilho histórico da independência? Se alguém julga estar submetido ao centralismo de Londres, porque razão há-de ter medo do centralismo de Bruxelas (que é bem menor, está menos enraizado e afinal fica mais longe)?

Eurodeputado (PSD)

Sugerir correcção
Comentar