O califado

Ajudaria a entender o jihadismo debruçarmo-nos com mais atenção sobre a síndrome de orfandade.

A 3 de Março de 1924 em Ancara, a Grande Assembleia Nacional turca (kemalista) aboliu o califado, o órgão máximo, na Terra, da hierarquia dos crentes. A qualidade de califa pertencia desde vários séculos, por inerência ao sultão, o imperador dos otomanos, chefe da maior potência muçulmana do Ocidente desde o século XV. As duas funções, as duas qualidades, a temporal e a religiosa, estavam investidas numa mesma pessoa, numa mesma entidade. Apesar de algumas inevitáveis conturbações, este longo período de confluência político-religiosa decorreu com assinalável estabilidade e, na História do Islamismo, é visto – salvo nas derradeiras décadas, as do declínio – como uma fase de fulgor e de império.

Com a derrota da Turquia na Guerra de 1914-18 e a subida ao poder de Mustafá Kemal Ataturk, o criador da Turquia moderna, o laicismo foi imposto com grande vigor em todo o país e, naturalmente, a nova república, sem sultão, também não fazia sentido que albergasse a autoridade máxima da fé muçulmana. Extinto, pura e simplesmente, o califado ficou vazio desde então. Ninguém, nenhuma força, nenhum Estado, nenhuma seita ousou restabelecê-lo, pelo menos se estivermos a falar de tentativas sérias. É a esta luz que devemos observar o actual protagonismo do chamado ISIS. Para além das selvajarias, das brutalidades, das violações de todo o tipo que justamente nos espantam e indignam, o Estado Islâmico representa uma tentativa desesperada, quase intuitiva, do regresso a uma hierarquia antiga, a uma sonhada idade de ouro (sonhada, sim, mas os sonhos por vezes são objectivos) de unidade, de organização, de regresso institucional. Visto assim, o ISIS pode paradoxalmente representar um desejo de estabilidade, de paz, ainda que através dos meios mais adversos a esses desideratos.

Claro que esta tese de "orfandade paranóica" só pode ter algum sentido se nos referirmos aos chefes, aos ideólogos do movimento e não ao conjunto das tropas jihadistas, para quem o assassínio e o sangue serão um fim em si mesmo. Em regra, são os generais que traçam a estratégia e os objectivos das guerras, não os soldados. Seja como for, creio que ajudaria a entender o jihadismo debruçarmo-nos com mais atenção sobre a síndrome de orfandade, de desejo de unificação que pode ser uma das bases do movimento. Aliás, não nos esqueçamos de que a ideia de califado até estava inclusa no nome original pelo qual o movimento foi conhecido no Ocidente...

Jurista

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