"O Brasil perdeu uma década com hesitações ideológicas e esse é um tempo irrecuperável"

O economista e ex-presidente do Banco Central do Brasil Gustavo Franco é um crítico severo dos governos do PT. Considera as suas políticas macroeconómicas “inconsistentes”, afirma que “o Brasil é um país que tem um problema fiscal e não o reconhece” e acusa o Governo de se basear numa “ideologia quase de autarcia” que afastou o país do ciclo global de crescimento.

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Gustavo Franco, economista e ex-presidente do Banco Central do Brasil Reuters

Gustavo Franco (Rio de Janeiro, 1956), um dos criadores do Plano Real lançado há 20 anos, ex-presidente do Banco Central do Brasil, estratega da área de investimentos de uma empresa de serviços financeiros e académico com vários títulos publicados é um crítico empenhado das políticas do PT (Partido dos Trabalhadores, do ex-Presidente Lula da Silva e da actual Presidente Dilma Rousseff).

Nas suas crónicas no jornal Globo e no Estado de São Paulo, associa a retracção do consumo à queda do crescimento, defende uma maior liberalização da economia e o recuo dos gastos públicos para incentivar o investimento privado e reclama uma maior integração do Brasil nos fluxos da economia global. Apesar de ser destacado militante do Partido da Social Democracia Brasileira, não vai participar na campanha presidencial do candidato oficial do PSDB, Aécio Neves.

PÚBLICO - Qual é a principal causa para a desaceleração da economia brasileira depois de 2010?
Gustavo Franco - Essa expansão que vem perdendo fôlego depois de 2008/2009, é uma expansão baseada no consumo. Ela foi extraordinária nesse período que vai de 2003 até à crise, e quando a crise é superada, em 2009-2010, nós não voltamos a retomar o crescimento do consumo com o mesmo vigor. Claramente o modelo mostra sinais de esgotamento porque o novo patamar de endividamento familiar é elevado. Está-se a verificar certa resistência das pessoas a endividarem-se mais para consumo e, ao mesmo tempo, num momento como o actual em que a taxa de juros começa a crescer, soma-se a isso o aumento do custo dos empréstimos. Por isso, a economia encolheu. A grande decepção das autoridades é que elas imaginavam que esse processo de expansão baseado no consumo alavancado, no consumo e dívida familiar, fosse fazer começar um processo de aumento na formação de capital. Ou seja, as empresas investiriam mais, fariam mais capex [investimento de capital], com o intuito de criar capacidade produtiva para um crescimento sustentado maior.

Por que é que isso não aconteceu?
Isso não ocorreu. A expansão do consumo foi perdendo fôlego e não veio a ser substituída por uma expansão baseada no investimento. Essa é a explicação sobre o porquê do crescimento que vem perdendo impulso já faz algum tempo.

Como é que o Brasil pode contornar a actual situação? Como é que pode voltar a conquistar níveis de crescimento semelhantes aos registados na década passada?
Pois é, teria de ser numa base diferente, onde o investimento, o capex, o gasto de capital das empresas tivesse um papel mais importante do que teve no passado. Nesse particular, os números brasileiros são muito ruins para os padrões internacionais. A formação de capital é algo como 18% do PIB, que compara com 45% na China ou 33% na Coreia ou em outros países de emergentes, que têm taxas brutas de capital fixas muito elevadas. Por que é que no Brasil essa taxa é tão baixa? São muitas as explicações. A principal é que o custo de capital é muito elevado, a taxa de juro é muito alta; a segunda é que o mercado de capitais é pouco desenvolvido; a terceira é que os empresários reclamam muito de impostos e outras dificuldades no seu cash-flow.

E têm razão?
Todas essas razões são legítimas, e todas elas são associadas às finanças públicas. O governo é muito grande, muito endividado, com défices muito grandes. Portanto, a própria política fiscal tem sido o grande obstáculo para abrir mais espaço para a economia privada adquirir a sua própria dinâmica, o seu próprio ritmo de investimento maior. Nos últimos anos, em particular desde 2010, a política fiscal piorou, a situação fiscal ficou mais frágil e isso prejudicou ainda mais a intenção e a possibilidade de trazer mais investimento privado para contribuir para o crescimento.

Admite a possibilidade de, lá para 2015 ou 2016, o Brasil com estes problemas possa conhecer uma recessão?
Acho uma recessão pouco difícil, porque com a demografia - o Brasil tem muita gente jovem -, é difícil imaginar que um país assim sofra uma contracção. A menos que a inflação vá-se elevar muito e seja preciso praticar uma política fiscal e monetária deliberadamente recessiva para domar a inflação. Não é o caso. Porém, o que a maior parte dos analistas enxerga é um crescimento atravancado num nível baixo.

Um dos problemas assinalados é que o custo real dos salários tem aumentado muito acima da inflação. Verifica a possibilidade de haver condições políticas para se reajustar o nível do rendimento do trabalho nos próximos anos? Isso é uma necessidade para a economia do Brasil reganhar competitividade?
Bom, isso é muito importante e acho que nos últimos anos os aumentos, sobretudo no salário mínimo, foram muito além do que se poderia, não apenas ao nível da inflação, mas também ao nível da produtividade da economia e isso criou muitas distorções no mercado de trabalho brasileiro. Nas regiões onde o salário mínimo é mais importante, por exemplo no Nordeste, temos um desemprego muito maior do que a média nacional. Já entramos num terreno onde o salário mínimo começa a produzir desemprego e informalidade, além do que o salário mínimo tem efeitos fiscais ruins porque as aposentações e pensões de servidores públicos está conectada ao salário mínimo. Também os funcionários públicos no activo, principalmente nas pequenas prefeituras, não podem ganhar menos do que o salário minino nacional e isso deteriorou muito as finanças públicas de muitas municipalidades pequenas. Os salários no sector privado, sobretudo nas áreas urbanas, estão crescendo muito porque o desemprego tem estado muito baixo. Isso tem criado uma combinação muito difícil para as empresas, que é a do pleno emprego, salários crescentes e uma procura fraca, crescimento fraco, vendas que vêm crescendo com pouca velocidade. Empresas que nesse contexto jamais vão pensar em começar processos de investimento. Então, de facto, estamos diante de um conjunto de políticas macroeconómicas verdadeiramente inconsistentes.

Há quem defenda que a sustentação da previdência não está em causa nos próximos 20 anos por causa dos padrões da demografia. Concorda? Ou era melhor o Brasil encarar esta questão como um problema?
O problema existe neste momento. Em razão da demografia o sistema actual deveria estar a produzir superávite. Nós criámos obrigações de natureza assistencial que são permanentes e que utilizam esse superávite que é apenas temporário. É como se tivéssemos adiantado o período de esgotamento do bónus demográfico. Nós gastamos esse dinheiro. Daqui para a frente, quando a população começar a envelhecer e as receitas do superávite da previdência começarem a diminuir, como criamos outras despesas com esse dinheiro, nós vamos ter problemas mais rapidamente do que daqui a 20 anos. Isso é uma situação muito séria e claramente não se pensou no futuro desse assunto. Nós gastámos o dinheiro antes da hora e comprometemo-nos a longo prazo com despesas assistenciais e esse dinheiro vai nos fazer falta muito breve.

Há muitos analistas que consideram que o maior problema do ciclo que o Brasil enfrenta é a inflação. Também acha que o fantasma da inflação é a maior ameaça para os próximos tempos?
Eu não sei se é a maior ameaça, mas é um problema que se vai tornando muito mais sério com o tempo. Afinal o Brasil experimentou a hiperinflação há 20 anos e ninguém sabe dizer ao certo em que medida os maus hábitos desse tempo podem retornar. Há uma certa apreensão em que a inflação seja um pouco como o alcoolismo, que não tem cura e que ainda que o paciente tenha ficado sóbrio durante 20 anos, se ele voltar a beber, ainda que pouquinho, rapidamente pode ir para o descontrolo. Eu, como muitos, temos preocupação em relação a isso, mas não tenho muito a certeza. Vejo à nossa volta, na Argentina e na Venezuela, um crescimento vicioso e preocupante da inflação e ao mesmo tempo um estilo completamente novo de lidar com o problema, envolvendo muito artificialismo, muita maquilhagem. Tudo isso me deixa muito preocupado porque às vezes em vejo no Brasil coisas parecidas com o que se pratica na Argentina e Venezuela…

… refere-se ao controlo de preços de bens essenciais como a gasolina ou a electricidade?
Isso. Isso e também um esforço muito grande para ocultar a verdadeiro tamanho do problema fiscal, mas vendo aqui muita maquilhagem nos números fiscais dando a impressão de que a situação é melhor do que realmente é. Estamos a falar da contabilidade criativa.

Em termos internacionais, a dimensão da dívida pública é muito aceitável. Portugal, os Estados Unidos ou a Alemanha gostariam de ter essa dívida pública (cerca de 60% do PIB).
Pois é, mas há diferenças entre economias avançadas e economias emergentes. Para uma economia avançada, com mercados de capitais de grande porte e acostumados a absorver títulos públicos de longa duração, o endividamento médio antes da crise era de 70% do PIB, hoje está maior e nunca representou nenhuma espécie de pressão sobre as taxas de juro. Nas economias emergentes é diferente, porque não há tanta poupança acumulada, a riqueza dos fundos de pensão é pequena, os mercados de capitais são menores, tanto é que a média da divida publica em relação ao PIB nessas economias é na ordem de 30%. O Brasil tem o dobro disso e mesmo assim é um número sujeito a muita controvérsia. Há muitas dívidas ainda não contabilizadas. É uma situação preocupante e o governo tem uma postura a esse respeito que não inspira muita confiança, uma vez que trata sempre de ocultar qualquer problema, qualquer preocupação. Portanto, o Brasil é um país que tem um problema fiscal e não o reconhece. Isso é muito ruim e como o problema não vai embora, quando a gente finge que ele não existe isso só serve para retardar o momento em que o vamos ter de enfrentar.

Ou seja, como dizem os brasileiros, um dia terão de “cair na real”?
É verdade.

Um estudo de uma consultora internacional divulgado na cimeira de Davos coloca o Brasil no quarto lugar mundial entre os melhores destinos para as grandes empresas investirem. Isso não contraria de certa modo a leitura que faz da situação?
As razões para esse interesse são semelhantes às que levam as multinacionais a estabelecerem na China ou na Índia que são países que também têm os seus problemas. A primeira razão é o tamanho do mercado, a segunda é a perspectiva de crescimento potencial e a terceira é que todos os competidores estão a ir para o Brasil e então eles também têm de ter presença nesses países. Não interessa que traga o dinheiro para cá e não faça gastos de capital. O que temos observado no Brasil é que há um fluxo muito grande do que nós chamamos IDE [Investimento Directo Estrangeiro] que, no entanto, apesar do nome não é exactamente investimento. O que é isso? São fluxos cambiais de dólares que entram no Brasil para integralizar parcelas de capital estabelecidas no Brasil. É isso que a estatística regista a um ritmo de 60 mil milhões de dólares por ano. O assunto é diferente quando se pergunta o que estas empresas estrangeiras estão a fazer no Brasil. Estão a receber esse dinheiro das suas sedes e estão a iniciar projectos de investimento novos, estão efectivamente gastar dinheiro em máquinas, fábricas, novas instalações? E a resposta é não.  

O que explica que a economia com o maior parque industrial da América Latina exporte apenas 13% do PIB? É o resultado de uma política económica deliberada ou é uma resposta proteccionista à falta de competitividade externa do país em bens transaccionáveis que não sejam a agricultura e minerais?
São as duas coisas, mas acho que a primeira é mais importante. É uma política deliberada já muito enraizada no país sobretudo de repressão à importação. Uma cultura muito antiga de substituição de importações e de autonomia. Uma ideologia quase de autarcia, que faz uma associação entre comércio e vulnerabilidade: quando mais dependente do comércio exterior, mais vulnerável será o país. É uma cultura que vem dos anos 50 e que leva os mais variados instrumentos de política económica a um autismo contra a importação. Agora o facto é que se você não importa, você não exporta, excepto aquilo que vem directamente da natureza, da agricultura e da mineração, onde o Brasil tem vantagens comparativas. Mas em bens manufacturados, não existe exportação competitiva sem importação. Todos os países que exportam com sucesso precisam de importar os melhores insumos do mundo para que o valor adicionado que produzem seja exportado sem punição. Observe-se a Coreia do Sul, a China, grandes países exportadores que são também grandes países importadores. A exportação tem um conteúdo importado muito grande. Se não é possível importar não é possível exportar.

E isso é um problema para o Brasil que deveria ser mudado?
No mundo globalizado essa ideia de associação entre autonomia económica e autarcia tornou-se obsoleta. A ideia de que o país fica vulnerável se tiver mais comércio é uma tolice que foi comprovadamente abandonada. Talvez o que os anos recentes da globalização tenham revelado é exactamente o contrário, é que os países que mais cresceram nos últimos 20 ou 30 anos ou meio século sejam os países que tiveram o seu comércio internacional mais dinâmico. O Brasil tem uma máquina, uma burocracia, a legislação que não está adaptada para a exportação. Por isso nós temos ainda um longo caminho pela frente para arrumar a casa nesses assuntos do comércio exterior.

Que papel tiveram as políticas sociais da era Lula, e em concreto a incorporação na classe média, no mercado, de 40 milhões de pessoas, na expansão da economia brasileira da última década?
Elas foram importantes, mas há um vasto exagero na importância dessas políticas como explicação para esse fenómeno do crescimento da classe C, como se diz. A explicação é muito simples: é a demografia. O Brasil experimentou há duas décadas atrás uma queda extraordinária na taxa de fertilidade. Um exemplo típico desse fenómeno da classe C é o seguinte: há 15 anos uma família pobre, de classe D, tinha um casal e cinco filhos em idade escolar. De sete pessoas só duas trabalhavam, o que por si só é algo que agrega pobreza e piora a distribuição de rendimento. Dez anos depois, essa passa a ser uma família que tem sete pessoas e as sete trabalham. O rendimento familiar é muito maior. A capacidade de consumo é maior, todos podem se endividar para consumir.

E portanto o que se observa dos anos 90 para os anos que vivemos agora é que talvez seguramente mais de dois terços da mudança das pessoas para a classe C tem a ver o perfil etário da população. Os programas do Governo, sobretudo o crescimento muito forte do salário mínimo, também ajudaram a adicionar rendimento nesse segmento, sobretudo nas classes C e D. Mas o grande programa social do Governo, o Bolsa Família, é um programa que atinge a classe E, a da extrema pobreza que se move talvez na direcção da classe D. Esse programa não teve impacte nenhum no crescimento da classe C. Portanto aqui dentro do Brasil há uma visão bastante mais crítica desse assunto das políticas do Governo Lula. A demografia ajudou, agora o que o Governo fez com o Bolsa Família ninguém discute que é positivo, uma vez que trata da extrema pobreza, mas o assunto não dá para ir muito mais adiante. O salário mínimo é um instrumento de política social com limitações.

Por que é que o Brasil se atrasou tanto a construir infra-estruturas básicas, como estradas ou caminhos-de-ferro, cuja falta é hoje considerada como um dos principais obstáculos ao crescimento?
Por duas razões. Uma foi a incapacidade de fazer crescer no sector privado a taxa de investimento. As empresas brasileiras que trabalham nesse ramo ou em ramos próximos da infra-estrutura investem pouco. A segunda explicação é a própria erosão da capacidade de investimento do Governo. O Governo, da democratização para cá, em razão dos dispositivos da nova Constituição de 1998 passou a ter obrigações de natureza social que são um gasto corrente muito maior e em razão disso não tem mais dinheiro para fazer investimento, para utilizar os impostos para fazer portos e estradas e essas coisas. São duas explicações, e ambas querem dizer uma coisa: falta de dinheiro. Claro que havia uma alternativa que foi explorada de forma limitada e que ainda permanece em aberto que é a privatização. Muitas das áreas da infra-estrutura que o Governo não tem os recursos para explorar, ele poderia perfeitamente ter privatizado, dado em concessão, o regime é o que menos importa. Isso funcionou muito bem, por exemplo, com as telecomunicações, que é uma área de infra-estrutura em que o Brasil não tem carências. O Governo do PT tem uma enorme resistência nesse assunto de privatização, uma resistência ideológica, uma oposição que está no DNA, mas no entanto teve que recuar e teve que começar um programa de concessões. Mas começou agora, que está a terminar o terceiro mandato do PT. Perdemos uma década com hesitações ideológicas e esse é um tempo irrecuperável.

A exploração do petróleo do pré-sal impõe que a Petrobras, uma empresa maioritariamente pública, controle pelo menos um terço da exploração das novas jazidas. Como a exploração exige enormes recursos, o país continua sem aproveitar esse enorme potencial. Na sua opinião o Brasil deveria liberalizar a exploração do petróleo do Pré-sal para obter resultados mais céleres?
Penso que sim. Hoje o próprio Governo reconhece que errou nesse assunto. Esse dispositivo, que só pode ser explicado por razões ideológicas, tecnicamente destruiu a Petrobras. A Petrobras vale hoje talvez metade ou 40% do que valia antes deste Verão porque ficou sujeita a uma imposição de participar em todos os projectos de extracção de petróleo, no mínimo, com 30% e numa situação onde, por cima disso, o Governo ainda controla os preços da gasolina. Ou seja, não deixa que as novas necessidades de financiamento da empresa sejam feitas pelos aumentos de preços dos derivados do petróleo. Então a companhia não tem caixa para fazer esses investimentos e quem tem de botar o dinheiro é o Tesouro Nacional, o que no fundo leva a uma conclusão que o nacionalismo é muito caro. Para ser nacionalista, é preciso estar preparado para tributar mais pesadamente os seus cidadãos. E como isso se revelou difícil no Brasil, o Tesouro se endivida. A dívida pública está a crescer para cobrir esse hiato, essa diferença, esse custo da ideologia nacionalista que adoptámos nesse assunto. Foi um erro e um erro politicamente complexo de ser reconhecido e de voltar atrás. Foi um erro e um erro muito caro.

Vai participar activamente na próxima campanha presidencial ao lado do candidato do seu partido (PSDB), Aécio Neves?
Eu tenho ligação com o PSDB, vou ajudar o partido como um membro do partido, como economista do partido, mas não pretendo participar directamente na campanha.

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