Não basta um novo Papa

1. A preocupação única com o perfil do próximo Papa é ambígua. Pode dar a ideia de que as qualidades do novo Papa, humanas e sobrenaturais, irão resolver, por si só, as questões com que se debatem as comunidades católicas no mundo inteiro.

Na memória de muitos católicos, e não só, a eleição de João Paulo II era uma primavera de promessas: novo, desportista, actor, assistente de movimentos juvenis, com uma capacidade de comunicação espantosa, confessava que o caminho da Igreja era a do ser humano e vinha de um país de Leste.

Quando ficou irremediavelmente doente, as suas grandes qualidades foram celebradas, de novo, na sua capacidade sacrificial. Para esta mentalidade, renunciar seria uma traição ao vitalício carisma papal. Veio Bento XVI e, de repente, o importante era o Papa teólogo, capaz de dialogar com o pensamento moderno e, para alguns devotos, o maior pensador do século XX. O cardeal Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, não tinha mostrado grande respeito pelos seus colegas teólogos, nem capacidade ou vontade de diálogo com todos aqueles que tinham uma hermenêutica diferente do Vaticano II. Ele defendia a da continuidade, dizendo que os outros eram por uma hermenêutica da ruptura. Reduziu, de facto, a teologia a um comentário do Magistério.

Tendo, porém, criado um vazio à sua volta, no mundo teológico, não associou ao seu governo as Conferências Episcopais, nem valorizou o papel dos Sínodos dos Bispos. Acabou por ficar confinado ao mundo da Cúria, com ferrugem de séculos, segundo D. António Marcelino, bispo emérito de Aveiro.

Seja como for, pelo que consta, o seu legado na reforma da Cúria não parece brilhante, nem sequer aos olhos de Bento XVI.

2. É normal que os católicos desejem para Papa uma pessoa com muita capacidade de liderança, que goste mais de escutar do que de falar ou impor a sua vontade, um cristão em permanente conversão, um servo dos servos de Deus. Que use, com verdade, a bela e antiga metáfora de Sumo Pontífice: ser exímio em fazer pontes, ser ecuménico, ser dialogante, com crentes e não crentes.

Se desejarmos apenas isso, acabaremos por ficar frustrados. Personalidades assim não se podem encomendar, sobretudo num grupo já de si tão restrito, o dos cardeais eleitores: estes eram 117 até ao último domingo. 61 europeus; 19 latino-americanos; 14 norte-americanos; 11 africanos; 11 asiáticos e um da Oceânia. Na Europa, 28 são italianos.

A verdadeira questão não é a das características individuais do Papa. A questão é a do papado, isto é, a do sistema de governo da Igreja Católica.

Os Papas apresentam-se como sucessores de S. Pedro. Pedro era casado e talvez a sua mulher o acompanhasse nas suas viagens missionárias. (1 Cor 9,5).

No Novo Testamento aparecem quatro listas de Apóstolos e, nas quatro, Pedro figura em primeiro lugar. O texto-chave sobre a sua primazia é o de Mt. 16, 17-19: Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja. Jesus não o tratou sempre assim: arreda-te de mim Satanás, porque não pensas as coisas de Deus, mas dos homens (Mc 8,27-33). Durante o processo de Jesus, traiu o Mestre três vezes. Paulo enfrentou a sua hipocrisia, em Antioquia (Gal 2, 11-14). No entanto, a referência a Pedro é clara, mas quem escolheria, hoje, para Papa alguém com estas características?

3. Seria um abuso responsabilizar S. Pedro pela história do papado e pela sua configuração actual. Segundo parece, o primeiro bispo de Roma a ser chamado Papa foi João I, no séc. VI, embora fosse um termo do vocabulário cristão, de carinho pelos pastores das comunidades.

Nas circunstâncias actuais, nos limites da escolha de um novo Papa, seria desejável ver alguém eleito disposto a fazer uma reforma do governo da Igreja Católica. Antes de mais, que se lembre da ausência de representação de metade da Igreja, denunciada pelo cardeal Suenens, no Vaticano II: as mulheres. Acabar com a forma actual de sigilo na escolha dos bispos. A eleição do Papa seria mais representativa se fosse escolhido a partir de representantes das Conferências Episcopais do mundo católico. Os movimentos laicais, na sua diversidade, deveriam dispor de canais de representação. As Congregações Religiosas, femininas e masculinas, não poderiam ficar de fora, dado o seu carisma de carismas na Igreja.

Certamente estou a esquecer muita coisa. Pouco importa agora. Pretendo apenas ver restaurado e aplicado um princípio antigo do direito: o que diz respeito a todos deve ser tratado por todos, segundo as modalidades possíveis, em cada época e nas diversidades das culturas.

Os direitos humanos são secularizações de valores cristãos: liberdade, igualdade, fraternidade. É sintomático que a fraternidade nunca tenha tido muita aceitação, mas sem ela a liberdade e a igualdade serão sempre abstractas.
 
 

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