Milhares despedem-se de Nemtsov, vítima de tiros "contra a democracia na Rússia"

Presidente Vladimir Putin enviou o seu representante oficial no Parlamento às cerimónias fúnebres do opositor assassinado com quatro tiros pelas costas.

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O corpo de Nemtsov esteve no Centro Sakharov, em Moscovo Maxim Shemetov/Reuters
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Maxim Shemetov/Reuters
Ilia Yashin, outro opositor de Putin, deposita flores no caixão de Nemtsov
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Ilia Yashin, outro opositor de Putin, deposita flores no caixão de Nemtsov KIRILL ZYKOV/AFP
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Zhanna, filha de Boris Nemtsov Tatiana Makeieva/Reuters
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Dina Eidman, mãe de Boris Nemtsov OLGA MALTSEVA/AFP

Os protestos esporádicos e tímidos da oposição russa nos últimos dois anos explodiram num grito de revolta após o assassinato de Boris Nemtsov na noite da passada sexta-feira, morto com quatro tiros nas costas a uma centena de metros do Kremlin. Milhares de admiradores, apoiantes ou apenas cidadãos que partilhavam com ele algumas das suas críticas ao Presidente russo, prestaram-lhe nesta terça-feira uma última homenagem – a ele e "à democracia na Rússia".

"Os tiros foram disparados não apenas contra Nemtsov, mas também contra todos nós, contra a democracia na Rússia, e contra a possibilidade de as pessoas manifestarem as suas próprias opiniões", afirmou Gennadi Gudkov, outro conhecido crítico de Vladimir Putin, ao lado do caixão que guardava o corpo de Boris Nemtsov numa das salas do Centro Sakharov – um espaço nomeado em honra de Andrei Sakharov, o famoso dissidente soviético e activista dos direitos humanos que morreu vítima de ataque cardíaco em 1989.

O caixão com o corpo de Nemtsov esteve no Centro Sakharov cerca de quatro horas, tendo seguido depois para o cemitério Troiekurovskoie, onde estão sepultadas muitas outras personalidades de várias áreas da sociedade russa, entre as quais Anna Politkovskaia, a jornalista e também conhecida opositora de Vladimir Putin que foi assassinada em 2006, em Moscovo.

O Presidente russo não esteve presente nem na homenagem nem no funeral, mas enviou o seu representante oficial no Parlamento, Garry Minkh. Muito notada foi a presença dos vice-primeiros-ministros russos Arkadi Dvorkovich e Sergei Prikhodko, em representação do Governo liderado por Dmitri Medvedev – um deles, Dvorkovich, é visto como um dos políticos mais liberais do executivo russo e chegou a criticar publicamente a decisão de Vladimir Putin de se recandidatar à Presidência da Rússia, em 2012.

Algumas personalidades de outros países estiveram também presentes nas cerimónias, como o antigo primeiro-ministro do Reino Unido John Major, que se deslocou a Moscovo a pedido do actual chefe do Governo, David Cameron. Em declarações à BBC, Major disse apenas que esta foi a sua "visita mais triste" à capital da Rússia.

UE denuncia "grave afronta"
O funeral de Boris Nemtsov agravou ainda mais o afastamento entre a Rússia e a União Europeia, depois de Moscovo ter impedido os representantes da Polónia e da Estónia de assistirem à cerimónia.

Bogdan Borusewicz, presidente do Parlamento polaco e antigo opositor do regime comunista no país, viu recusado um pedido de visto pelas autoridades russas – segundo o Kremlin, Borusewicz foi impedido de entrar na Rússia por estar na lista de personalidades estrangeiras visadas por sanções, em resposta à proibição de entrada em países da União Europeia da presidente do Parlamento russo, Valentina Matvinenko.

A representante da Letónia, a eurodeputada e antiga ministra dos Negócios Estrangeiros Sandra Kalniete, queixou-se de ter esperado duas horas no aeroporto de Sheremetievo, em Moscovo, antes de lhe ter sido negado um visto de entrada no país.

"Como sempre falei com muita clareza sobre o envolvimento da Rússia na Ucrânia, suspeitava que isto pudesse acontecer", disse Kalniete ao jornal britânico The Guardian.

"Não vinha à Rússia para fazer declarações políticas nem para ofender pessoas. Queria apenas prestar homenagem a Boris Nemtsov, que eu considero ser uma das mais brilhantes e admiráveis personalidades políticas na Rússia", disse a eurodeputada da Letónia à BBC.

As portas fechadas em Moscovo à entrada dos enviados polacos e estónios levou o presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, a falar numa "grave afronta" e a anunciar que vai "exigir uma explicação oficial" às autoridades russas.

Também o departamento de política externa da União Europeia, liderado pela italiana Federica Mogherini, criticou a actuação de Moscovo, através de um comunicado em que faz referência às "tensões" entre a Rússia e os seus parceiros europeus por causa da guerra no Leste da Ucrânia.

"A justificação dada à sra. Kalniete, que tem um passaporte diplomático, insinua que ela representa uma ameaça à segurança do Estado ou à ordem pública da Federação Russa", lê-se no texto, escrito pela porta-voz Maja Kocijancic. "Apesar de a União Europeia estar decidida a encontrar um caminho para melhorar as relações, estes sinais enviados pela Rússia adicionam novas tensões em tempos já difíceis, com o início de uma tendência para impedir de forma selectiva a entrada de representantes da União Europeia na Rússia devido a razões aparentemente arbitrárias", denunciam os responsáveis pela política externa da União Europeia.

Em resposta, o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros russo, Alexander Lukashevich, disse que a representante da Estónia já tinha sido informada de que não seria autorizada a entrar na Rússia, devido às suas "actividades anti-russas" – o responsável do ministério liderado por Sergei Lavrov disse ainda que a insistência de Sandra Kalniete em tentar entrar no país só podia ser entendida como "uma provocação".

Teorias para todos os gostos
Boris Nemtsov, 55 anos, já não era um dos principais rostos da oposição a Putin – esse papel é agora ocupado por figuras mais jovens, como Alexei Navalni, de 38 anos, que não conseguiu convencer a Justiça russa a conceder-lhe uma pausa nos 15 dias de prisão, a que foi condenado em Fevereiro, para poder assistir ao funeral desta terça-feira.

Apesar das ondas de choque provocadas pelo assassinato de Nemtsov, a oposição de personalidades como Alexei Navalni ou de Maria Aliokhina e Nadezhda Tolokonnikova (integrantes da banda punk Pussy Riot) é mais valorizada fora da Rússia do que no interior do país, como indicam os índices de popularidade do Presidente russo, que atingiram valores astronómicos após a anexação da península da Crimeia, em Março do ano passado.

A forma como Nemtsov foi assassinado – na Grande Ponte de Pedra, perto do Kremlin, um dos locais mais vigiados do mundo – e a aparente ausência de indícios que possam levar à detenção dos responsáveis têm suscitado uma variedade de teorias sobre quem está por trás do crime.

Vladimir Markin, porta-voz da comissão de inquérito nomeada pelo Presidente Putin para investigar o caso, disse que Boris Nemtsov pode ter sido morto por islamistas radicais devido ao seu apoio aos cartoonistas do jornal satírico francês Charlie Hebdo, mas também pode ter sido vítima de uma cabala dos opositores do Kremlin, com o objectivo de "desestabilizar a situação política do país".

Do lado da oposição não falta quem aponte o dedo ao próprio Vladimir Putin, directa ou indirectamente – o Presidente russo terá mandado assassinar Nemtsov porque este teria documentos que provavam o envolvimento de soldados da Rússia na guerra no Leste da Ucrânia, ou então a sua retórica nacionalista, que transformou opositores em traidores, terá aberto as portas a uma acção de extremistas.

Esta última hipótese é defendida por Mark Galeotti, professor de Assuntos Internacionais na Universidade de Nova Iorque e antigo conselheiro do Foreign Office britânico.

"A verdade é que os políticos e os governos têm muito menos controlo sobre os acontecimentos do que eles e nós pensamos. A minha tese é que Nemtsov foi morto por assassinos sem ligações – e não por agentes do Governo ou por fanáticos da oposição", escreveu o especialista no jornal The Guardian.

Ainda assim, Galeotti sugere a quem procura uma resposta que olhe para Vladimir Putin: "O que os levou a matar uma figura anti-governamental sem a notoriedade de outros tempos foi, muito provavelmente, o clima político cada vez mais intoxicado que é claramente um produto do Kremlin, em que pessoas como Nemtsov são apresentadas como agentes do Ocidente e inimigos do povo, da cultura, dos valores e dos interesses russos."

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