Federica Mogherini não considera a Rússia uma ameaça e isso é um problema

A acção da propaganda de Moscovo na Europa é uma ameaça à coesão da política da UE, considera o secretário de Estado para os Assuntos Europeus checo, Tomás Prouza. A Alemanha deve ser o seu principal alvo este ano.

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As pessoas na República Checa não sabem como integrar os refugiados muçulmanos, reconhece Tomás Prouza KOCA SULEJMANOVIC/EPA

Tomás Prouza é o secretário de Estado para os Assuntos Europeus do Governo checo liderado pelo Partido Social-Democrata pró-europeu, que tem de lidar com uma opinião pública bastante eurocéptica e com um Presidente da República que faz gala no apoio que deu à candidatura de Donald Trump. A sua tarefa é, portanto, tudo menos fácil. Prouza, que  esteve em Lisboa para conversações com a sua homóloga portuguesa, critica a forma como a União Europeia lida com a Rússia, acusa a Alta Representante da UE para Política Externa e Segurança Federica Mogherini pela falta de coerência e aproximação à Rússia. Tenta explicar a rejeição dos refugiados muçulmanos. Elogia Merkel e considera que a Europa não pode mais adiar a criação de uma capacidade militar digna desse nome.

A República Checa, a Hungria ou a Polónia estão a atravessar um caminho turbulento na sua relação com a Europa. O Governo de Praga é excepção, mas o Presidente Milos Zeman não é. Como explica esta tendência?
Creio que o problema mais importante é que, quando falamos da União Europeia, apenas falamos sobre a economia. Falamos de crescimento económico mas nunca falamos sobre valores. Creio que isso é ainda uma herança do regime comunista, quando nunca se falava de valores.

Mas já lá vão muitos anos depois da democratização, e esse sentimento não muda.
Creio que foi esse o principal erro dos nossos líderes políticos. Se olhar para a história recente, o Presidente Havel tinha como objectivo o regresso à Europa. Os que vieram a seguir a ele, o Presidente Vaclav Klaus e, agora, o Presidente Zeman, olham para as questões económicas e não se preocupam com os valores.

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Tomás Prouza, secretário de Estado para os Assuntos Europeus checo DR

O Grupo de Visegrado fazia sentido há alguns anos. Hoje, representa países muito diferentes nas suas relações com a Europa. Ainda faz sentido para enfrentar unido as questões europeias?
Ainda faz sentido em algumas áreas. O Grupo de Visegrado foi criado para nos ajudar a preparar a adesão à União Europeia e à NATO. E uma das razões pelas quais creio que sobreviveu ao longo dos últimos 25 anos foi porque nunca tentámos estar de acordo sobre tudo. É graças a esta informalidade que continua a funcionar. Mas também constatámos nos últimos dois ou três anos que o rótulo Visegrado é, por vezes, demasiado perigoso. Por exemplo, hoje a política externa checa está muito mais focada na Alemanha, ao mesmo tempo que tentamos trazer a Áustria para o lado da Europa Central. E também tentamos olhar para fora do nosso espaço, dedicando muito tempo e energia a trabalhar com países como a Suécia e a Holanda, e estamos a ver se conseguimos trabalhar melhor com a Espanha e Portugal, uma região na qual nunca investimos energia suficiente. Foi um dos erros do passado.

A Polónia tem hoje um Governo nacionalista fortemente contra Moscovo. O Governo húngaro é igualmente nacionalista mas, pelo contrário, elogia o Presidente russo. Qual é a posição checa neste jogo que se vive hoje na Europa Central?
Para nós é muito claro: a Rússia não é um amigo, pelo contrário, é um dos principais perigos. Um dos problemas maiores com que nos debatemos é a propaganda russa e a minoria russa no nosso país, mais ou menos 100 mil pessoas…

O que não parece muito num país de 10 milhões.
Pois não. Há mais ucranianos. Mas a diferença é que estes últimos querem integrar-se, e os russos não querem. Têm escolas separadas, os seus médicos, os seus advogados, vivem em pequenos enclaves e isso é um problema potencial. Um exemplo simples é o número de diplomatas que a Rússia mantém no país. A China tem 30 diplomatas em Praga. Os EUA cerca de 70. A Rússia 140.

Como vê as questões de segurança que se colocam aos Bálticos face à Rússia? A eleição de Donald Trump pode complicar ainda mais as coisas?
São várias questões. Em relação aos Bálticos, creio que o perigo maior ainda é de natureza militar. Para países como o meu, o que está em causa é mais a capacidade de propaganda, tal como vimos agora nos Estados Unidos, pondo em causa os fundamentos do processo democrático. A Rússia leva a cabo muitas destas operações na República Checa, mantém cerca de 40 sites de desinformação e consegue que as pessoas pensem que nada é hoje verdadeiro ou permanente. O que é muito diferente da velha propaganda comunista, em que tentavam convencer-te de que o céu é verde. Com esta nova propaganda, dizem-te que é ligeiramente azul ou ligeiramente verde. Tem efeito sobretudo na gente mais nova, que não participou na transição democrática. Ouço jovens dizerem que a democracia é demasiado complicada, que tudo acontece muito devagar, aceitando facilmente a ideia de que seria melhor ter alguém capaz de tomar decisões rápidas e de as implementar. E isto é muito perigoso.

Como é que vê que a União Europeia e a NATO devem reagir a esta pressão contante de Moscovo sobre a Europa?
A minha preocupação é que alguns países não vêem a Rússia de Putin como um perigo real. O maior problema é a Itália, mas também estamos surpreendidos com a Holanda. Há tantas empresas russas registadas na Holanda por causa dos benefícios fiscais que acabam por ser uma forma de pressão sobre o Governo. Creio que estes dois países são a maior interrogação sobre o futuro da relação com a Rússia. E o terceiro problema é a própria [Alta representante para a politica externa e de segurança] Federica Mogherini. Ela está muito longe de considerar a Rússia uma ameaça. O que se espera de alguém com o seu cargo é que seja capaz de estimular a Europa a ser mais activa. Mas quando vejo o que faz, duvido que ela queira mesmo que a UE seja um actor forte na cena internacional. Mesmo em questões vitais para nós, como o conflito na Síria. Mogherini repete constantemente que está feliz por a Europa não se ter envolvido na Síria. E eu creio que não há problema mais importante do que a crise síria, pelas suas consequências, por exemplo, na vaga de refugiados. Mogherini satisfaz-se com o facto de a crise ser apenas da responsabilidade da Rússia e dos Estados Unidos.

Foi Merkel quem conseguiu manter a Europa unida face a Putin e foi também ela que se mostrou aberta e generosa perante os refugiados. Como é que olha hoje para a Alemanha?
Creio que a chanceler vai ser o alvo principal das operações russas este ano. Os russos farão tudo o que poderem para apoiar o SPD e o Die Linke, de forma a favorecer uma coligação entre sociais-democratas e ex-comunistas. Se isso acontecer, podemos esquecer qualquer política europeia coerente face à Rússia. As sanções acabarão rapidamente.

Como vê o futuro da União Europeia, com todas estas contradições e desacertos? Está pessimista?
Nasci optimista mas creio que existe mesmo um perigo significativo de vivermos uma grande crise. Putin sabe como jogar o jogo no longo prazo. Finge que está a jogar xadrez mas está a jogá-lo com um stick de hóquei. E nós não estamos preparados para isso. Não nos coordenamos suficientemente. O que sempre me surpreende é que, mesmo em 2017, depois dos atentados terroristas e com a crise ucraniana, nem sequer os serviços secretos se conseguem coordenar devidamente.

A NATO apesar de tudo decidiu aumentar a sua presença militar nos Bálticos e na Polónia, incluindo tropas americanas. Mas também ainda não sabemos o que Trump poderá fazer nesta matéria.
É por isso que acho que nos temos de concentrar muito mais na criação de uma capacidade militar europeia. Temos talvez 10 a 15 anos para o fazer. Mas a primeira coisa que temos de decidir é se realmente queremos fazê-lo enquanto União Europeia. Em Dezembro, Mogherini apresentou ao Conselho Europeu aquele maravilhoso documento sobre a estratégia de global europeia, que é vago e vazio e ninguém se deu sequer ao trabalho de o discutir. Queremos mesmo ser uma potência com influência global? Talvez não. Talvez não nos interesse o que se passa na América Latina ou no Mar da China. Mas se queremos ser uma potência regional, como é que definimos a nossa região? É só a Europa? Ou uma Europa que inclua a Rússia e a Turquia? Que inclua o Médio Oriente? A África do Norte? Sim ou não. Nunca fazemos esta discussão para depois tomar decisões. Talvez seja essa a primeira coisa que temos de fazer. Ainda podemos contar com os EUA e com a NATO. Mas, para mim, o problema maior da NATO não são os EUA, é a Turquia. Sabemos que os EUA nos darão algum tempo para melhorarmos as nossas próprias capacidades. Mas a Turquia pode decidir amanhã bloquear qualquer decisão nesse sentido. E não temos qualquer forma de pressioná-la.

Regressando aos refugiados, a República Checa tem revelado uma forte tentação xenófoba em relação aos refugiados islâmicos, mas também a outras minorias como os ciganos. Faz parte da herança comunista? Como explica isto?
Como já lhe disse, temos uma grande comunidade ucraniana que se integrou perfeitamente. O que fizemos com eles foi dar-lhes acesso imediato à autorização de trabalhar e de residir. Há quinze anos vinham sobretudo homens para trabalhar. Hoje vêm famílias. Também temos uma comunidade vietnamita significativa, que remonta aos tempos do comunismo. Estão integrados, trabalham imenso, os seus filhos frequentam as escolas. E há também uma comunidade cubana de que toda a gente gosta.

O mesmo não se passa com os refugiados de origem islâmica.
Nunca soubemos como integrar os ciganos e o problema já tem 50 ou 60 anos. E é por isso que as pessoas estão tão preocupadas com os refugiados muçulmanos. Não sabem como integrá-los. O segundo problema é que subestimámos o impacto dos media. Quando ligamos a televisão ou lemos os jornais, as únicas vezes em que o Islão é mencionado é por causa do Estado Islâmico e do terrorismo. Nunca há uma história positiva. As pessoas têm medo porque os associam ao terrorismo e temem que não se consigam integrar. E, infelizmente, o exemplo dos ciganos está sempre presente.

Tem eleições em Outubro deste ano. O seu partido pode voltar a ganhar?
Temos de ganhar. O combate será entre os sociais- democratas e esse novo partido formado por um milionário a quem chamamos o Berlusconi checo. Mas é um desafio diferente. Esse partido foi muito eficaz num aspecto: convencer as pessoas de que já não se trata de um debate politico entre esquerda e direita, mas de um debate entre novo e velho, acrescentando que o velho nunca ganha. É um grande desafio para nós.

Como é que estão a ver o Brexit? Não há muitos checos no Reino Unido, creio eu.
Não. A Polónia sim, tem mais de um milhão e muitos deles pouco qualificados. Há cerca de 100 mil checos mas todos eles altamente qualificados. Se eles forem forçados a regressar, será óptimo para a nossa economia. Se os polacos tiverem de regressar criarão um sério problema social.

Mas o impacto do "Brexit" não é apenas em matéria de livre circulação. Foi, apesar de tudo, uma surpresa.
Porque subestimámos o problema dos fluxos migratórios internos. Há muita gente que acredita que os imigrantes dos países europeus mais pobres vão para a Alemanha ou para o Reino Unido para ter acesso a benefícios sociais. Temos de contrariar esta ideia que é falsa, porque as pessoas vão para trabalhar e contribuem para o sistema de segurança social desses países. Desde o referendo que aumentaram os ataques aos checos na Inglaterra, quase sempre verbais mas algumas vezes físicos. E a última vez que vimos estas coisas acontecer na Inglaterra foi nos anos trinta do século passado. Pensávamos nunca mais ver tal coisa. Descobrimos que não era verdade. Vemos isso na antiga Alemanha de Leste, mas também na Holanda. A única resposta que temos é garantir salários mais altos e um nível de vida melhor nos países da Europa Central e Oriental. E o problema é que, na maioria dos países europeus, mesmo quando há crescimento do PIB, os salários não aumentam.

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