DSK ou a França numa série policial americana

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O caso DSK colocou frente a frente culturas jurídicas, mediáticas e políticas completamente diferentes Reuters

Texto publicado originalmente no P2 de dia 07/06/2011

Efeito secundário do escândalo Dominique Strauss-Kahn: palavras como "antiamericanismo" ou "francofobia" voltaram à ordem do dia. O caso colocou frente a frente culturas completamente diferentes. Nenhuma das partes está disposta a ceder. Qualquer uma das partes julga que é superior à outra. Os correspondentes franceses nos EUA estão no centro do fogo cruzado.

As séries policiais americanas são muito populares em França. CSI? Os franceses chamam-lhe Les Experts. Quando Dominique Strauss-Kahn emergiu de uma esquadra no Harlem, algemado e escoltado por polícias, na noite de 16 de Maio, tudo parecia tão familiar como qualquer episódio de uma série policial. Só que a realidade pode parecer mais estranha do que a ficção: aquele não era o homem que ia ser o próximo Presidente de França?

Nenhum dos jornalistas franceses que esperavam frente à esquadra - alguns deles há 18 horas, como o correspondente da AFP Stéphane Jourdain - pediu uma reacção ao ex-chefe do FMI quando ele passou, antes de entrar num carro da polícia nova-iorquina.

"Ontem à noite, a imagem arrepiante de DSK algemado deixou-nos sem fala", escreveu Stéphane Jourdain no Twitter.

"Para nós [franceses], é inimaginável que a polícia pare o carro a 25 metros da esquadra para que os fotógrafos tenham tempo de fotografar DSK ao sair", explica Stéphane Jourdain ao P2. "Em França ele teria saído de um parque de estacionamento num carro de vidros fumados e não o teríamos visto."

"O sistema jurídico francês é diferente", diz Fabrice Rousselot, correspondente do diário francês “Libération” em Nova Iorque. "Não teríamos visto DSK algemado nem fotografias dele numa cela. A lei francesa proíbe a publicação de imagens incriminatórias antes de a pessoa em causa ser provada culpada."

A imagem siderou a França na manhã seguinte. "A imprensa francesa podia ter decidido não publicar as fotos, mas fê-lo", nota Fabrice Rousselot.

"É fácil para os franceses dizerem que é revoltante e depois usarem as fotografias. No outro dia estava a ver as notícias na France 1 e France 2 e havia todo um debate sobre o assunto, mas estavam a mostrar as imagens de Strauss-Kahn algemado. Se é tão repugnante como dizem, não mostrem. É muito simples."

Por outro lado, a imprensa francesa não parece ter tido tanto zelo em proteger a privacidade e reputação da empregada do Sofitel que alegadamente DSK tentou violar a 15 de Maio. "Eu sei o nome dela desde o segundo dia. Não o publiquei ainda, quando a maioria da imprensa francesa já o fez." A imprensa americana também não divulgou a identidade da mulher "porque é ilegal e não foi fornecida pela polícia". Publicações como a “Paris Match” e o “Figaro” não só revelaram o seu nome como o da sua filha de 15 anos. A sua fotografia também já saiu nos jornais franceses.

Seja qual for o ângulo, França e América teimam em não fazer nada igual. O caso DSK colocou frente a frente culturas jurídicas, mediáticas e políticas completamente diferentes. Nenhuma das partes está disposta a ceder. Qualquer uma das partes julga que é superior à outra. Elisabeth Guigou, ex-ministra da Justiça francesa, socialista como DSK, reagiu dizendo-se "feliz" por a França não ter o mesmo sistema judiciário que os Estados Unidos. Citação de um artigo de opinião do “New York Post”, publicado a 26 de Maio: "Tudo o que posso dizer é - ainda bem que Strauss-Kahn vai ser julgado nos Estados Unidos e não em França".

As acusações voam por cima do Atlântico, num vai-e-vem.

Os americanos? Puritanos! Os franceses? Coniventes!

E eles - correspondentes franceses nos Estados Unidos - no meio disto? "Cada um tem o seu sistema, cada sistema provou a sua eficiência, cada sistema tem as suas inconveniências. Mas o que se passa é que as pessoas fazem julgamentos precipitados porque não percebem um sistema que funciona de forma diferente. Como o fizeram alguns americanos em artigos um pouco rápidos. E como o fizeram alguns franceses", diz Stéphane Jourdain, salomónico. "O antiamericanismo sempre foi muito forte em França, que é um pequeno país comparado com os Estados Unidos. Sempre que surgir uma oportunidade de gozar os americanos ou de mostrar que eles fazem as coisas mal, fá-lo-emos."

Por exemplo: os franceses criaram um grupo no Facebook intitulado "Os maiores escândalos do caso DSK: as gravatas dos polícias", uma crítica humorada às gravatas berrantes usadas pelos agentes que escoltavam Strauss-Kahn quando saiu da esquadra no Harlem. O site www.ties4cops.com permite alterar a cor e padrão das gravatas. Declaração de intenções: "O público francês é especialmente exigente no que diz respeito ao vestuário e elegância e ficou profundamente chocado pelos acontecimentos que recentemente trouxeram gravatas tão revoltantes para as primeiras páginas dos seus jornais nacionais."

E vice-versa? "Em todo o lado há French bashing [francofobia] nos últimos dias. Fiz um artigo sobre isso", diz Stéphane Jourdain. "Incomodou-me que o procurador tenha comparado DSK com Roman Polanski, dando a entender que todos os franceses vêm violar americanas aos Estados Unidos e a seguir fogem."

O sociólogo francês Dominique Wolton fala de uma "incompreensão real" entre os dois países comparável ao fosso criado pela invasão do Iraque em 2003.

"Eu estava em Nova Iorque na altura", diz Fabrice Rousselot, do “Libération”. "E agora noto o mesmo tom antifrancês nos tablóides americanos, com todos os clichés: "Os franceses julgam que são donos de toda a gente, são tão arrogantes, este tipo é um monstro, pensa que pode fazer o que lhe apetece". Isso voltou. Mas estamos a falar de tablóides e não da imprensa americana em geral. E, para mim, os tablóides são uma espécie completamente diferente. Basta sair de Nova Iorque e o “New York Post” ou o “Daily News” deixam de existir."

Nos oito dias que esteve em Nova Iorque cobrindo o caso DSK para a AFP, Stéphane Jourdain detectou "uma certa tensão entre os jornalistas americanos e franceses, que nunca se misturaram", mantendo a distância.

"Tive a impressão de que os americanos não percebem por que não investigámos este homem antes. Nós, por outro lado, não percebemos por que houve tantas primeiras páginas de tablóides com manchetes como: "Le perv" [O perverso] ou "French whine" [Choramingão francês]."

"Espanta-me que o caso interesse tanto aos media americanos", diz. "O New York Times fala dele o tempo todo, a televisão fala dele o tempo todo. Ninguém conhecia DSK nos Estados Unidos, à excepção dos jornalistas e das pessoas em Washington."

Jean-Philippe Balasse, correspondente da rádio Europe 1, reforça: "Lembro-me de estar no Harlem no sábado à noite e alguém de um canal de televisão perguntar: "Ele é muito famoso em França?".

Nas primeiras horas do escândalo, a correspondente do “Libération” em Washington, Lorraine Millot, lembrou que fontes no FMI vinham insistindo desde há muito para que os jornalistas franceses investigassem "a aventura" que Strauss-Kahn tivera com uma subordinada húngara sob o pretexto de que ela sofrera pressões "inaceitáveis".

"Por que não falam disso? Não querem investigar o caso?", perguntavam-nos certos colaboradores do FMI ainda recentemente", escreveu Millot no blogue Great America. "Ao que nós respondíamos que em França procuramos o mais possível manter a vida privada dos nossos dirigentes... privada."

Vidas sob escrutínio

"Tout le monde savait" (Toda a gente sabia), foi o título de primeira página do France-Soir ao quarto dia do escândalo.

"Durante anos os jornalistas sabiam que Dominique Strauss-Kahn tinha um comportamento sedutor com as mulheres mas ninguém falou disso", diz Stéphane Jourdain. "Toda a gente sabia que era um libertino, que tinha tido casos com várias mulheres, que era relativamente agressivo nas suas tentativas de conquista. Mas em França consideramos que a tarefa do jornalista termina à porta do quarto. Pessoalmente, isso parece-me lógico. Não há razão para explicar quem dorme com quem. Sobretudo quando isso é um desporto nacional para os políticos franceses, de esquerda ou de direita."

"Nos Estados Unidos, para se ser político, é preciso dar uma imagem de pureza", diz Sylvain Cypel, correspondente do “Le Monde” em Nova Iorque. "É por isso que há tantas histórias sexuais envolvendo figuras políticas." Bill Clinton, Newt Gingrich, Eliot Spitzer, John Edwards, Arnold Schwarzenegger...

Aqui, as vidas privadas dos políticos são sujeitas a um intenso escrutínio público porque o carácter de um candidato é o que mais pesa quando um eleitor americano está sozinho diante do boletim de voto.

"Muitos políticos americanos apregoam valores familiares e religiosos e, obviamente, se tiverem um comportamento muito diferente nos bastidores, isso tem algum interesse público", diz Stéphane Jourdain, da AFP. "Em França os valores familiares e religiosos não são um argumento eleitoral. No limite, todos os Presidentes - Nicolas Sarkozy, Jacques Chirac, até Mitterrand a outro nível - são conhecidos por terem sido grandes sedutores. Existe esse mito do French lover: a ideia de que a pessoa que nos representa à cabeça do Estado deve ser um sedutor, alguém que agrada às mulheres. Ao passo que nos Estados Unidos é mais importante ir à missa aos domingos com a família do que o resto."

Os franceses orgulham-se da sua tolerância em relação às questões privadas dos seus homens públicos e julgavam-se superiores aos americanos na defesa do direito à privacidade.

Mas uma pergunta incómoda foi-se avolumando desde que o caso DSK aconteceu: os franceses não serão também culpados, por saberem há muito que ele era um predador de mulheres e não fazerem nada para impedi-lo?

Essa dúvida percorreu editoriais e comentários na imprensa americana com um tom maioritariamente acusatório, mas alguns jornalistas franceses também fizeram um exame de consciência. Marion Van Renterghem, repórter do “Le Monde” enviada a Nova Iorque para cobrir o caso, disse ao New York Times: "Não foi uma surpresa porque eu sabia que ele [DSK] tinha este vício, mas não deixo de estar estupefacta - tendo em conta o que sabíamos dele, por que é que nós, jornalistas, nunca escrevemos uma linha sobre isto?"

"É certo que devíamos ter feito mais perguntas, mas o microcosmos parisiense é tão poderoso, a consanguinidade entre políticos e jornalistas é tão grande, que não se pode pedir aos jornalistas franceses que de um dia para o outro reajam e trabalhem como os americanos", nota Stéphane Jourdain.

Sylvain Cypel insiste numa distinção importante: o que devia ter sido investigado não são as "múltiplas conquistas" de DSK, "as suas idas a clubes de swingers, o facto de ser conhecido por ter necessidades sexuais de todo o género". "As práticas sexuais consentidas entre dois adultos são da ordem da vida privada", defende. Se houve negligência jornalística, ela tem a ver com o facto de existirem indícios de pelo menos dois precedentes de agressão sexual - um episódio envolvendo a economista húngara Piroska Nagy, em 2008, o outro a jovem escritora francesa Tristane Banon, em 2002; nenhuma das mulheres apresentou queixa - que não foram alvo de investigação. "Se os jornalistas sabiam desses episódios e não revelaram, é condenável", diz Sylvain Cypel. Não porque tenha havido práticas sexuais, mas porque se tratou de actos criminais. Do mesmo modo que o caso Sofitel não é um problema de comportamento sexual. É um caso criminal."

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