Diário do Conclave: “O Papa vai ser negro, eu vi”

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A multidão juntou-se na Praça de S. Pedro Reuters

No dia do anúncio da renúncia de Bento XVI, a 11 de Fevereiro, dois fotojornalistas posicionaram-se de máquinas viradas para a Basílica de S. Pedro, à espera do raio que haveria de cair na cúpula. No dia em que o Papa se despediu dos crentes e dos bispos, na sua última audiência geral, a 27 de Fevereiro, o céu de Roma fez-se azul e a única nuvem, branca e suave, colocou-se mesmo em frente à Basílica, enquanto Ratzinger rezava e se despedia.

Nesta terça-feira, a chuva voltou a abater-se sobre Roma e o Vaticano. Tinha chovido de noite e continuou a chover de dia, nem sempre, mas muitas vezes e com muita força em quase todas, choveu água e caiu granizo e o vento era frio. Na Praça que se encheu para se despedir de Ratzinger, de manhã só algumas centenas de pessoas resistiram à chuva e acompanharam a missa Pro eligendo Romano Pontifice, presidida pelo decano do Colégio Cardinalício, Angelo Sodano.

A Basílica de S. Pedro com todos os cardeais lá dentro impõe algum respeito e nem é preciso ouvir as suas palavras nem estar no seu interior: basta vislumbrá-la através de um dos ecrãs gigantes instalados na Praça. As colunas laterais, as que se erguem do lado do acesso à Basílica, oposto aos Correios e à Aula Paulo VI, onde foi instalado o centro que recebe os 6000 jornalistas que o Vaticano recebe por diasestão em obras. E nem a missa as fez parar e houve quem ouvisse Sodano com o barulho de fundo de marteladas.

Na Praça houve quem rezasse de joelhos no chão molhado (sem poder evitar ser apanhado pelas máquinas dos fotógrafos omnipresentes), quem cantasse a viva voz e talvez até tenha havido quem se concentrasse apenas nas imagens, ignorando as marteladas e até as preces de Sodano. Uma missa com todos os cardeais é uma dança permanente, tem camadas de cores, tem momentos com e sem chapéu, tem um homem de 85 anos a distribuir a hóstia a dezenas e dezenas de leigos. Tem dezenas de cardeais em filas simultâneas, a servirem-se eles mesmos de hóstias. Tem uma procissão que é a coreografia final com Sodano na cauda.

Desde o fim da missa da manhã não mais pararam de chegar pessoas à Praça. Ir a Roma e não ver o Papa é raro. Ir a Roma e poder estar em S. Pedro no momento em que o fumo branco anuncia a eleição de um Papa é pelo menos tão apetecível. E é por isso que estes dias também se fazem de corridas até à Praça, de esperas intermináveis, de dores de pescoço causadas pelas horas a olhar para cima – e houve quem começasse a olhar para a chaminé ainda a porta da Capela Sistina não se tinha fechado para o início do conclave.

Para a esmagadora maioria dos que estiveram em S. Pedro nesta terça-feira, era óbvio que o fumo branco não chegaria ainda. Mas era importante vir na mesma, estar ali, ver quem estava, encontrar amigos, rezar mais perto dos cardeais ou apenas dar a ver-se. Quem tem coisas para dizer sabe que este é um bom palco, que haverá sempre alguém para ouvir, crente, turista ou jornalista.

“Por que não?”, disparou John quando lhe dissemos que nem ele acreditava que o primeiro fumo não seria negro. “Coisas mais estranhas já aconteceram no mundo. Não foi Deus que mandou o seu filho à terra para falar aos homens?”, continuou o norte-americano, sacristão em Nova Iorque e em Roma, sempre que por cá passa e que algum dos seus muitos amigos de batina lhe pede.

John chegou sozinho, chapéu-de-chuva azul aberto, mas na verdade não falta quem oiça o que ele tem a dizer. Angela, por exemplo, uma alemã de cachecol muito colorido que antes víramos com outras duas senhoras, ocupadas a escolher o melhor lugar para espalhar no chão uma grande bandeira, está a ouvir tudo o que John nos diz e às tantas decide juntar-se à conversa. São 18h e isso serve de pretexto. Angela quer mostrar-nos que um dos relógios da Basília parou – habitualmente estão os dois a funcionar, um com as horas certas e outro muito atrasado.

“Vêem? Está assim desde manhã. Quer dizer que escolherão um negro”, assegura. “Ai, sim? Pode ser”, responde John. A conversa começa em inglês mas rapidamente Angela pergunta a John se fala alemão e a resposta é positiva. Não tarda Angela está a contar-lhe que Bento XVI acenou a centímetros dela na última volta pela Praça. E pouco depois está a dizer-lhe que tomou o pequeno-almoço do dia do arranque do conclave com vários cardeais, incluindo o ganês Peter Turkson.

“O Papa vai ser negro. Eu vi”, garante a alemã e John não sabe bem o que pensar disso. Decide responder-lhe com sinceridade: “Eu só queria que Bento XVI fosse reeleito. Improvável, eu sei, mas não é impossível. Coisas mais estranhas já aconteceram.”

Enquanto conversava com John, Angela insiste em oferecer-nos uma pequena bandeira, que nem é do Vaticano nem da Alemanha, tem um animal desenhado e talvez seja de um programa infantil alemão… Depois, como tinha aparecido, desaparece entre a multidão cada vez mais espessa.

É fácil encontrar com quem conversar ou com quem partilhar um chapéu-de-chuva em S. Pedro. Choveu tanto e houve tantos chapéus-de-chuva partilhados. Desde que acabou a missa Pro eligendo Romano Pontifice os ecrãs em S. Pedro só mostram aos fiéis imagens de si mesmos, na Praça, intercaladas com a chaminé. O primeiro fumo foi negro, pelas 19h42 (18h42, hora de Lisboa) do primeiro dia do conclave. Até chegar o fumo branco muitas mais conversas ajudarão a passar o tempo por aqui.
 

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