Casamento de muçulmanos suspenso em Nice por suspeitas de radicalização

A celebração da união civil foi suspensa com recurso à lei que permite inquirir se a união se vai realizar com o consentimento de ambos os noivos. Pelo menos 1400 franceses combatem com jihadistas na Síria e no Iraque.

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O autarca de Nice teme que a noiva esteja a ser radicalizada Fred Dufour/AFP

Deveriam ter-se casado na segunda-feira, mas no sábado souberam que isso não ia acontecer. Não se sabe muito sobre a noiva, de 21 anos, ou o noivo, de 28, ambos muçulmanos. Apenas que ele foi condenado em Janeiro por agredir, com outros dois homens, um padeiro que acusava de não ser “bom muçulmano” e estava identificado como “susceptível de partir para fazer a jihad no estrangeiro”. A jovem “estava envolvida num fenómeno de radicalização que se tinha acelerado nos últimos meses”, diz o presidente da câmara de Nice, Christian Estrosi.

Foi o suficiente para Estrosi decidir intervir e tentar impedir que o casamento se realize. A câmara pediu à justiça a suspensão, invocando um artigo do código civil que permite anular uma união civil se não existir “consentimento livre dos dois esposos ou de um dos dois” ou “se há indícios sérios de que o casamento desejado pode ser anulado”.

Na verdade, ninguém fala em “falta de consentimento”, só em “risco de radicalização” da noiva, identificado por um grupo municipal de acção contra as derivas fundamentalistas criado pela cidade em Novembro, e que até agora assinalou uns 30 casos de possível radicalização.

“Quando sabemos que o futuro esposo foi condenado, há menos de dois meses, por violência em grupo contra um padeiro pelo simples facto de este vender sanduíches de fiambre e bolos com rum, eu considero que tenho legitimidade para recorrer ao procurador”, afirma Estrosi, membro do partido de direita UMP, citado pela imprensa francesa. Estrosi defende que tinha “uma dúvida legítima sobre a sinceridade da união que devia ser celebrada”.

A procuradoria decidiu abrir um inquérito e a justiça pode agora autorizar ou recusar a realização do casamento se comprovar existirem dúvidas fundamentadas sobre a falta de consentimento.

Aparentemente, não é o caso. No dia em que deviam casar-se, os dois jovens apareceram no registo civil da autarquia para manifestar o seu descontentamento. Ela, escreve o Le Monde, estava vestida com algo “próximo do niqab”, o véu constituído por diferentes lenços, deixando os olhos a descoberto ou cobrindo-os com um lenço mais transparente, o último a ser colocado. Não foram sozinhos. Familiares e amigos apareceram numa dezena de veículos que chegaram a “bloquear” a rua “fazendo um uso intempestivo das buzinas e dos alarmes”, queixa-se a câmara municipal.

A França já estava particularmente preocupada com o número de cidadãos que têm partido para combater na Síria e no Iraque, recrutados por grupos terroristas como o autoproclamado Estado Islâmico. Em Novembro, reforçou a sua legislação antiterrorista e os poderes para deter alguém por suspeitas de querer ir combater no estrangeiro. O ataque contra o jornal satírico Charlie Hebdo, a 7 de Janeiro, seguido de outro contra uma mercearia judaica, fazendo um total de 17 mortos, em Paris, deixou as autoridades ainda mais atentas ao fenómeno da radicalização.

Os três envolvidos nestes ataques tinham planeado partir para o Iraque ou para a Síria, acabando por atacar o jornal que se tornava um alvo de grupos radicais por causa dos seus cartoons de Maomé.

Defender a República
“Na nossa República, isto é intolerável. Eu não cederei, mesmo se isso me fizer correr riscos, não podemos ser fracos quando se trata da República”, comentou ainda o presidente da câmara de Nice.

O Governo francês tem insistido que uma das estratégias de combate à radicalização passa por “mobilizar a sociedade e a escola para os valores da República”, nomeadamente a secularidade, ou laicidade. Isto no país que em 2004 proibiu o uso do lenço islâmico nas escolas públicas (o hijab, que cobre apenas o cabelo) e em 2011 aprovou uma lei que prevê multas para quem “cubra o rosto em público”, a chamada “lei da burqa, promovida pela UMP do então Presidente, Nicolas Sarkozy. Por causa desta lei, que tem como alvo as mulheres que usem burqa (que cobre todo o corpo e rosto) ou niqab e que o Conselho da Europa considerou violar a liberdade de expressão e de religião, o país passou anos a debater a identidade e a laicidade.

Ninguém sabe quantas francesas partiram para se juntar a grupos radicais na Síria ou no Iraque. Em Novembro, as autoridades falavam de 900 franceses, incluindo umas 60 mulheres. Hoje, o Governo do primeiro-ministro, Manuel Valls, acredita que são 1400 os franceses ao lado dos jihadistas que conquistaram vastas zonas de território nos dois países.

Há quase um ano, a síria Haya El Ali, que foi ameaçada pelos radicais e hoje vive em França, filmou às escondidas a sua cidade, Raqqa, bastião dos radicais. Num dos seus vídeos, Haya está num café de Internet onde várias mulheres conversam no Skype – algumas falam um francês perfeito. “Não tens de ter medo nem de estar assustada”, diz uma à sua interlocutora, que não pára de chorar. “O que vês na televisão é mentira. Não acredites. Eu não estou a correr riscos. Não quero voltar, tenho aqui tudo o que preciso.”

A síria Haya chegou a conversar com uma destas mulheres, que se disse francesa e de origem francesa. Entre os 220 franceses que regressaram a França depois de terem passado pela Síria ou pelo Iraque, sabe-se que há algumas mulheres e adolescentes. Ao contrário dos homens, normalmente atraídos pelo estereótipo do combatente poderoso ou decididos a “procurar a sua identidade”, os especialistas dizem que as mulheres partem habitualmente para “viver plenamente a sua fé” ou por “desejo de se sentirem úteis” e “vontade de ajudar populações vítimas da guerra”.

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