Brasil: antecipar o futuro

Não reivindicamos uma origem ou uma identidade fixa. Nossa identidade é plural e difusa, pois a mestiçagem é parte constitutiva da sociedade brasileira. E, pelo menos nesse sentido, antecipamos o futuro.

Para a imensa maioria dos portugueses, o 25 Abril de 1974 significou liberdade. Mas para muitos brasileiros, abril foi o mês mais cruel, pois o primeiro dia de abril de 1964 marcou o início de uma ditadura que durou mais de duas décadas. Nesse dia sinistro eu tinha onze anos de idade e percebi vagamente que alguma coisa grave estava acontecendo em Manaus, cidade onde nasci. As ruas, o aeroporto e a área portuária foram ocupados pelas forças armadas. O ambiente da cidade era outro. O Brasil, de norte a sul, tornou-se outro.

Em dezembro de 1967, deixei Manaus, minha família e meus amigos e fui morar em Brasília, onde estudei num colégio público, cuja proposta pedagógica era notável. Àquela época Brasília significava, para muitos de nós, um futuro promissor. Em 1960, a inauguração da nova capital dera alento a nossa frágil (e efêmera) democracia. Era como se a utopia ou um grande sonho estivesse no horizonte do possível. O ousado projeto urbanístico de Lucio Costa e os anos prósperos da década de 1950 – com o Plano de Metas do então presidente Juscelino Kubitschek (1956-61) –, pareciam simbolizar a antecipação do futuro, ou do país do futuro, como escreveu Stefan Zweig. Mas nada disso aconteceu. A vida na capital do país era, mais que árida, opressiva. Vivíamos sob o signo do medo, da ameaça, da delação. O Ato Institucional n.º 5 (decretado em 13/12/1968) deu poderes extraordinários ao marechal Costa e Silva, suspendeu as garantias constitucionais e fechou o Congresso Nacional. O AI-5 significou a coroação da barbárie, do totalitarismo.

O golpe militar que destituiu o presidente João Goulart e interrompeu brutalmente a democracia foi um retrocesso em todos os sentidos. No complicado xadrez geopolítico da Guerra Fria, a América Latina não podia pertencer à esfera de influência da então União Soviética. O Governo dos Estados Unidos, com a CIA à frente, financiou instituições civis e militares e deu total apoio político a todos os golpes que destituíram brutalmente os governos democráticos da América do Sul. Sem isso, e sem o apoio de setores da classe média, da igreja católica e do empresariado, esses golpes de Estado talvez não tivessem vingado.

Afora a violência do aparelho do Estado, que ceifou a vida de centenas de brasileiros e deixou milhares traumatizados pela prisão, tortura e exílio, a política econômica durante a ditadura concentrou ainda mais a renda. Esses foram os crimes mais ostensivos da ditadura. Mas outros crimes, menos comentados, devem ser mencionados. Um deles foi a destruição intencional do ensino público. Isto gerou uma verdadeira aberração na sociedade brasileira, pois os jovens de famílias pobres e humildes não tinham – e ainda não têm – acesso a uma boa formação educacional. Criou-se, assim, uma segregação social: os filhos da classe média e da elite estudam em boas escolas particulares, enquanto a imensa maioria dos jovens pobres frequenta escolas públicas precárias.

O outro crime diz respeito à destruição sistemática do meio ambiente e à invasão e ocupação de terras indígenas, cujas consequências foram trágicas. Isto aconteceu na década de 1970, com a construção das rodovias Transamazônica e Manaus-Boa Vista e uma série de atividades econômicas predatórias na Amazônia: extração de madeira, mineração e agropecuária.

Uma cena terrível da devastação da floresta pode ser vista no filme Iracema: uma transa amazônica, dirigido por Jorge Bodansky. Poucos anos depois, uma imensa área florestal perto de Manaus foi transformada num deserto artificial, úmido e triste, onde foram construídas milhares de casas populares. Foi uma imagem tão chocante que, 25 anos depois, eu a usei no romance Cinzas do Norte.

Desde a eleição de Fernando Henrique Cardoso o Brasil é governado por presidentes que lutaram contra a ditadura. O Plano Real (1994) foi o primeiro grande passo rumo à estabilização econômica. Recentemente o IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – divulgou um estudo em que assinala a melhora das condições de vida de 40 milhões de brasileiros e sua inserção no mercado de consumo. Entre 2001 e 2011 a diminuição da pobreza foi notável e a renda dos mais pobres cresceu com mais rapidez que a dos mais ricos. Mas 16 milhões de brasileiros ainda vivem na extrema pobreza, e, de um modo geral, a qualidade da educação pública permanece lamentável. Outros problemas seríssimos devem ser enfrentados pelos próximos governantes: a violência nas grandes cidades, a burocracia, a infraestrutura obsoleta, o desmatamento da Amazônia, do cerrado e da Mata Atlântica. Por fim, a corrupção secular, endêmica, que envolve uma parte do empresariado e dos três poderes da República. Esses problemas requerem a mobilização da sociedade e também dos governadores e prefeitos, pois estes têm autonomia administrativa e são diretamente responsáveis pela gestão de cada estado e município.

Por sua dimensão continental e vigor econômico, o Brasil tem se revelado uma potência consistente e em franca ascensão. Até certo ponto – e nos limites de sua possibilidade –, o Brasil tenta ser um ator relevante no concerto geral das nações. Hoje, tendemos a olhar para o mundo com menos estranhamento. Talvez as mesmas razões que nos levem a minimizar a questão da identidade nacional e a aceitar como essencialmente brasileiro tudo o que é estrangeiro no nosso território, também nos levem a ver com naturalidade e aceitar as diferenças entre os povos e nações, fazendo-os todos possíveis e legítimos interlocutores. Aos poucos, estamos perdendo a timidez e adquirindo alguma noção da nossa importância. Já não acreditamos em alinhamento automático com países centrais, pois desejamos ter voz própria, independente. E, o mais importante: aceitamos quase sem preconceitos o mundo em sua imensa variedade. Não reivindicamos uma origem ou uma identidade fixa. Nossa identidade é plural e difusa, pois a mestiçagem é parte constitutiva da sociedade brasileira. E, pelo menos nesse sentido, antecipamos o futuro.

Escritor, autor dos romances Dois irmãos e Cinzas do Norte, entre outros. A sua obra foi publicada em Portugal pela Cotovia

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