Atentado que matou antigo primeiro-ministro libanês chega por fim a tribunal

É o primeiro processo internacional por crimes de terrorismo. Os quatro acusados, todos membros do Hezbollah, continuam fugidos à justiça.

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Maqueta que reproduz a zona de Beirute onde explodiu a bomba que matou Hariri Toussaint Kluiters/Reuters

Nove anos, uma atribulada investigação e muitos milhares de dólares depois, começou nesta quinta-feira em Haia o julgamento dos alegados autores do atentado que matou o antigo primeiro-ministro libanês Rafiq Hariri. Para os seus apoiantes, é uma oportunidade histórica para quebrar a impunidade dos assassínios políticos no país, mesmo que os acusados continuem fugidos à justiça; para os detractores, é apenas um processo com motivações políticas.

“A prova, incluindo uma quantia considerável de dados de telecomunicações, mostra, sem margem para dúvidas, as verdadeiras identidades dos autores” do atentado, disse o procurador Norman Farrell, na sessão inaugural do julgamento, a decorrer na antiga sede dos serviços de informação holandeses. Criado pela ONU a pedido do anterior Governo libanês, o Tribunal Especial para o Líbano (TSL) é a primeira instância internacional criada especificamente para julgar crimes de terrorismo. É também a primeira vez, desde os julgamentos de Nuremberga, que um processo internacional decorre na ausência dos réus, sublinha a BBC.

Os quatro acusados são todos membros do Hezbollah, o movimento xiita libanês que é agora a principal força do executivo em Beirute e que recusou sempre colaborar com uma instância que diz ser resultado “de uma conspiração americano-israelita”. Terça-feira, a revista alemã Der Speigel escreveu que os serviços secretos ocidentais acreditam que os dois principais acusados vivem no Irão, criador e principal apoiante do Hezbollah a par da Síria, e que os outros podem ter sido mortos.

A acusação, que baseia as suas investigações nos registos dos telemóveis dos acusados, alega que Mustafa Badreddine, dirigente do Hezbollah e familiar de um antigo comandante do movimento, e Salim Ayyash planearam e executaram o plano contra Hariri – na manhã de 14 de Março de 2005, uma carrinha carregada com o equivalente a 2500 kg de TNT explodiu na marginal de Beirute à passagem do carro blindado de Hariri, matando 23 pessoas. Os outros dois acusados, Hussein Oneissi e Assad Sabra, são acusados de terem enviado à Al-Jazira um vídeo em que um grupo fictício reivindicava o atentado.

“Os acusados usaram uma quantidade extraordinariamente elevada de explosivos, muito mais do que o necessário para matar o seu principal alvo. O seu objectivo não era apenas garantir que o alvo era morto, mas mandar uma mensagem aterradora e causar pânico entre a população de Beirute e do Líbano”, sublinhou o procurador, que pretende chamar cerca de 500 pessoas a testemunhar, o que poderá arrastar o julgamento por mais de um ano.

Os assassínios políticos foram rotina durante a guerra civil (1975-1990), mas o atentado que matou Hariri colocou o Líbano à beira de uma nova guerra civil. As suspeitas – que as investigações iniciais corroboraram – recaíram sobre a Síria, que tutelava o Líbano desde a guerra civil e com quem Hariri, apoiado pela Arábia Saudita, entrara em rota de colisão. Damasco retirou as suas tropas, mas a instabilidade cresceu: o Governo seguinte, liderado por Saad Hariri, filho do antigo primeiro-ministro, foi derrubado em 2011, o Hezbollah reconquistou a influência perdida com a retirada síria e dezenas de políticos e figuras hostis à Síria foram assassinadas.

“Isto é totalmente novo no Líbano. Em 40 anos, nunca foi feita justiça nem se conheceu a verdade sobre nenhum assassinato”, congratulou-se Hamad Hariri, porta-voz da família e do partido do antigo primeiro-ministro.

Mas com o Líbano em risco de ser engolido pela guerra na Síria e com os atentados de regresso ao quotidiano do país – nesta quinta-feira, um carro armadilhado explodiu numa cidade do Vale de Bekaa, bastião do Hezbollah, matando três pessoas –, o desfecho do processo parece agora menos importante.

“O conflito na Síria eclipsou o julgamento”, disse à AFP Ghassan al-Azzi, professor de Ciências Políticas em Beirute, explicando que “a formação de um novo Governo ou a segurança são questões hoje muito mais importantes para os libaneses”. Ainda assim, afirma, a eventual condenação dos homens do Hezbollah “terá um impacto significativo no frágil equilíbrio libanês”.

Emile Hokayem, analista do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, concorda que o julgamento pode causar “complicações a curto e médio prazo”, mas sublinha que pode também ajudar a sarar feridas. “No Líbano, diz-se sempre que nenhum crime político é julgado adequadamente. Se não houvesse julgamento, isso seria um sinal de que não há esperança de justiça”, afirmou ao Washington Post.

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