“A nossa responsabilidade agora é garantir que o legado sobrevive”

O pós-Mandela ainda não começou. A África do Sul vive um momento de recolhimento, que muitos esperam seja também um momento para o Governo reflectir sobre formas de melhorar o país.

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O país vai estar de luto durante muitos dias Alexander Joe/AFP

A morte de Nelson Mandela era esperada, mas muitos sul-africanos não estavam preparados para a aceitar. O sentimento é “irreal” e a tristeza profunda, conta a sul-africana Joan Legalamitlwa, curadora e produtora de cinema, que diz não ter contido as lágrimas quando, frente à televisão, ouviu as palavras do Presidente Jacob Zuma a anunciar a morte de Nelson Mandela.

“Apesar de já estarmos à espera, não estávamos prontos para ouvir estas palavras”, continua Joan Legalamitlwa. “Como se todos nos tivéssemos habituado à ideia de que Mandela era imortal, invencível.” É profundo o sentimento de pesar e de perda, descrevem jornalistas e analistas da África do Sul ouvidos pelo PÚBLICO. O importante agora é fazer perdurar o legado. E transformar o sentimento de perda e orfandade em algo construtivo no futuro.

Legalamitlwa foi directora de encontros de cinema na África do Sul e júri em festivais de cinema internacionais. Fala por si e por milhões de sul-africanos. “Estar à espera” e “estar pronto para aceitar” não são a mesma coisa como acontece quando morre alguém que nos é próximo. E a proximidade era o dom de Mandela.

“Muita gente sente que conhece Nelson Mandela”, diz a partir da Cidade do Cabo fazendo eco das exactas palavras de Janet Heard, jornalista e editora do Cape Times que acrescenta: “Mandela representa o que há de bom neste país, todos os bons valores, a capacidade de perdoar. Há uma mudança simbólica e todos nós temos de manter vivos esses valores.”

Porém, o pós-Mandela ainda não começou. “O sentimento é de um imenso vazio. O país está de luto. E vai estar de luto muitos dias”, diz Janet Heard.

“As pessoas não pensam agora no futuro, querem prestar a Mandela uma homenagem digna”, acrescenta a jornalista a partir da Cidade do Cabo. Nesta cidade, na tarde de sexta-feira, uma missa juntou uma multidão de crentes de várias religiões em homenagem a Mandela, precisamente no local, frente ao City Hall (câmara municipal), onde Mandela proferiu o primeiro discurso depois de libertado a 11 de Fevereiro de 1990.

Para já, as pessoas querem, de forma pessoal e colectiva, encontrar a melhor forma de se despedirem. As bandeiras estão a meia-haste. O espaço das rádios e televisões está exclusivamente preenchido com homenagens ao líder. E por todo o país, realizam-se vigílias e iniciativas espontâneas, desde que às 23:45 de quinta-feira o Presidente Jacob Zuma anunciou a morte de Mandela, num discurso ao país na televisão. “A nossa nação perdeu o seu maior filho. O nosso povo perdeu um pai”, disse Zuma. Desde esse instante, a África do Sul parece ter parado por muitos dias. O funeral na aldeia de Qunu onde passou a infância, na província do Cabo Oriental, realiza-se no dia 15.

Quando finalmente o país puder olhar para o pós-Mandela, “de fundamental, pouco vai mudar”, considera Jakkie Cilliers, director do Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais de Pretória. Vários anos passaram desde a última vez que a voz do primeiro Presidente da África do Sul livre se fez ouvir. A mudança é sobretudo “simbólica”, acrescenta, embora reconhecendo que a presença do herói da luta anti-apartheid era sentida como uma referência, uma autoridade moral, mesmo se estava recolhido e longe dos olhares do público.

A extrema fragilidade de Madiba (o sem nome de clã) e as persistentes infecções pulmonares, tinham-no levado, nos últimos anos de vida, a permanecer por longas estadias no hospital. Várias vezes, os sul-africanos se prepararam para o anúncio da morte. O desaparecimento de Mandela deixa “um vazio na humanidade imensurável”, como escreveu a revista Time nos Estados Unidos e concorda Joan Legalamitlwa.

Por isso, no primeiro acordar sem o ex-Presidente sul-africano, sexta-feira, pensou em transmitir à filha de três anos uma imagem forte que permaneça com ela para sempre e seja, ao mesmo tempo, uma forma de celebrar Mandela. Por isso, caminho da escola, cantou com ela a cantilena que muitos sul-africanos conhecem e cantam: “Nelson Mandela, Nelson Mandela, não há ninguém como tu”. “A nossa responsabilidade agora é garantir que o seu legado sobrevive. É importante passá-lo às novas gerações”, conclui.

Joan Legalamitlwa crê que, apesar de os governantes estarem desligados das pessoas e de as pessoas acreditarem cada vez menos no Governo, este seja capaz de um momento de reflexão que o faça recomeçar exactamente no ponto onde Mandela deixou o país. “Isso passa por ter um relacionamento com o outro através do espírito umbuntu” que moldou Mandela, ou seja, a ideia de que “uma pessoa só é uma pessoa através do outro”, que só se é humano se se for humano para o outro. “Eu sou porque tu és”, resume Joan Legalamitlwa.

Agora, acrescenta, a questão não se põe entre o Congresso Nacional Africano (ANC, no poder) ou a Aliança Democrática (oposição). “A questão também não é entre negros, de um lado, e brancos, do outro. O importante é as pessoas serem tratadas de forma justa, e a democracia ser reavivada”, diz. “O importante é manter vivo o ideal pelo qual Mandela estava disposto a morrer.”

Ele próprio, que foi líder do partido histórico da luta anti-apartheid, dizia que se um dia o ANC mudasse e não tivesse em consideração os valores da sua fundação, “os sul-africanos deviam combater o sistema do ANC como, no passado, combateram o sistema do apartheid”, lembra Legalamitlwa. Essa mensagem de Mandela tem estado muito presente num momento em que falta esperança na África do Sul.

A crença de que os valores sobreviverão à figura também cunhou o adeus a Mandela de Frederik De Klerk, último Presidente branco do apartheid e último símbolo da supremacia branca neste país, que com o herói da luta anti-apartheid chegou a acordo para o fim do regime segregacionista e com ele partilhou o Nobel da Paz em 1993. Nesse adeus, De Klerk disse: “Tata (pai), vamos sentir a sua falta. Mas saiba que o seu espírito e o seu exemplo estarão sempre lá para nos guiar no sentido de uma visão de uma África do Sul melhor e mais justa.”

Existem “pessoas muito boas que partilham os mesmos valores de Mandela”, acredita Janet Heard. O arcebispo Desmond Tutu, por exemplo, ou Mamphela Ramphele, uma veterana do ANC e ex-companheira do activista anti-apartheid assassinado em 1977 Steve Biko, que lançou um novo partido político para disputar as eleições de 2014. Essas novas vozes dão esperança, diz a editora do Cape Times. “Precisamos de grandes líderes, capazes de abraçar os valores da reconciliação, justiça e boa vontade.” 

Líderes capazes de implementar aquilo que a revista Foreign Affairs dizia esta sexta-feira ser o dever essencial de um novo líder. “Um novo Nelson Mandela não poderia sarar as feridas [actuais] da África do Sul”, porque o país não precisa de esperança ou activismo mas de tecnocratas e engenheiros capazes de encontrarem soluções para resolver as “confusas realidades da ruína urbana e da pobreza rural”.
 

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