A compressão do pluralismo e a derrota das meias-tintas

As recentes eleições inglesas traduziram fundamentalmente as distorções geradas pelas regras eleitorais, mas também a ambiguidade e falta de assertividade dos trabalhistas.

As recentes eleições inglesas vieram revelar algo que há muito se sabia: os sistemas eleitorais maioritários a uma volta em círculos uninominais (650 distritos que elegem 1 só deputado, por maioria relativa, neste caso), também conhecidos por First-Past-The-Post (FPTP), provocam amiúde brutais distorções da vontade popular ao comprimir o pluralismo político na transformação de votos em lugares.

Mas se isto já se sabia, estas eleições recentes vieram revelar duas outras coisas quiçá menos conhecidas: primeiro, tais distorções tenderão a ser tanto maiores quanto mais o sistema partidário em termos eleitorais se afastar do bipartidarismo, como foi o caso; segundo, pequenos partidos em termos nacionais mas com elevada concentração de voto em ternos regionais podem até sair globalmente beneficiados na transformação de votos em mandatos. Neste artigo vamos pois, primeiro, esmiuçar os resultados eleitorais para ilustrar aqueles três efeitos mecânicos do sistema eleitoral britânico e a compressão do pluralismo que daí resulta. De caminho, em segundo lugar, tentaremos lançar algumas pistas explicativas da vitória dos conservadores, Tories, e da forte derrota dos Trabalhistas, (New) Labour.

Comecemos pelos resultados eleitorais e pelas distorções provocadas pelo sistema eleitoral. Os grandes beneficiários foram os Tories, que passaram de 36,9% dos votos para 50,9% de lugares (331 em 650, isto é, 5 lugares acima do limiar da maioria absoluta): um bónus na conversão de votos em mandatos de 14 pontos. Os outros dois partidos mais beneficiados foram o (New) Labour (NL), passando de 30,4% a 35,7%, e o SNP (Partido Nacional Escocês), com 4,7% dos votos e 8,6% dos lugares. Se o bónus de 5,3 pontos para o NL pouco lhe adiantou em termos políticos, pois o partido teve o seu pior resultado em Westminster desde 1987, a vantagem de 3,9 pontos foi brutal para o SNP, pois os nacionalistas arrebataram 56 dos 59 lugares que a Escócia tem no Parlamento Britânico. Este resultado pode parecer paradoxal, mas é simples de explicar: quando os partidos são muito pequenos ao nível nacional mas são simultaneamente os maiores/os mais votados na sua região, o maioritário a uma volta é um sistema que pode claramente favorecê-los, pois na sua região eles são o maior partido, logo basta-lhes chegar à frente com uma maioria relativa (FPTP) para arrebatarem o lugar em disputa em cada círculo. É por isso que os nacionalistas do Quebec são geralmente bem tratados pelo FPTP canadense. Algo de semelhante se passa na Índia com os partidos de base étnico-regional a desvirtuarem o bipartidarismo tendencial geralmente associado aos sistemas maioritários a uma volta. 

Depois temos os pequenos partidos tratados de forma neutra pelo sistema eleitoral (os vários nacionalistas do Ulster, onde são aplicadas regras proporcionais, e os nacionalistas galeses do Plaid Cymru). E, finalmente, os grandes perdedores destas regras eleitorais foram a direita radical, do UKIP, com 0,2% dos lugares (1) para 12,9% dos votos; os Liberais Democratas (LibDem), com 1,2% dos lugares (8) para 7,9% dos votos; e os "Verdes de Inglaterra e Gales", 0,2% para 3,8%. Para se perceber o grau de distorção de um tal sistema, basta pensar que os eleitores do CDS-PP, do PCP ou do BE seriam praticamente esmagados por um tal sistema (talvez o PCP se desse menos mal nos seus bastiões do Alentejo e da cintura industrial de Lisboa, onde tem apresentado sempre notáveis concentrações de voto). Mas não se pense que estas elevadas distorções ocorrem só em sistemas maioritários: há vários expedientes passíveis de usar em sistemas proporcionais, ou mistos, que produzem distorções de nível equivalente ao FPTP. Basta pensar na recente vitória do Syriza: com 36,4% dos votos ficou pouco abaixo da maioria absoluta (149 para 151 lugares num total de 300), nomeadamente porque a Grécia usa uma "representação proporcional reforçada". Um alerta para se manterem olhos bem abertos com eventuais reformas eleitorais por cá… 

Mas que fatores explicam a vitória dos conservadores e do SNP, a par da forte derrota dos LibDem e do NL? A vitória dos Tories é, além de imprevista pelas sondagens, extraordinária apenas em termos de lugares em Westminster e de controlo monopartidário do governo, porque em termos eleitorais os 36,9% de 2015 são praticamente iguais aos 36,1% de 2010, que na altura obrigaram a uma coligação com os LibDem. O que mudou foi mais a distribuição geral do voto pelos diferentes partidos, e os efeitos das regras eleitorais, do que a opinião pública britânica. Seja como for, os Tories terão beneficiado da retoma económica, sobretudo por contraste com o que se passa no estagnado Continente, da existência de parceiros fiáveis de governo, caso fosse necessário, e da estratégia bem-sucedida a aplacar o UKIP nos temas da imigração e do eurosceticismo. Esta placagem foi algo que o NL não conseguiu: foi muito acossado pela direita radical nalguns dos seus bastiões, algo que terá beneficiado os Tories. A derrota dos LibDem, por seu lado, estará relacionada com a incapacidade de, justa ou injustamente, o partido conseguir evidenciar o seu contributo específico na coligação, em termos de políticas, tirando o notável contributo para a estabilidade governativa.

Pelo menos em Portugal, para explicar a derrota dos trabalhistas grande parte dos opinion makers inclinou-se para uma suposta viragem à esquerda do partido, que teria alegadamente abandonado os ventos da "terceira via" da era Blair e, por isso, teria perdido. Dito de outro modo, segundo estes comentadores (por exemplo, Bernardo Pires de Lima), estes resultados evidenciam o falhanço de uma estratégia de recentragem dos sociais-democratas europeus à esquerda, nomeadamente no RU. Penso que esta é uma análise equivocada. Para esta minha argumentação, baseio-me, entre outros dados, nos estudos e comentários de Eunice Goes, Politóloga e Professora da Universidade de Londres. Primeiro, é verdade que Ed Milliband, o líder demissionário dos trabalhistas, ganhou o partido ao seu irmão David Milliband (ex-ministro de Blair e feroz adepto do NL), demarcando-se do centrismo ideológico da "terceira via" e, adicionalmente, contou com o voto crucial dos sindicatos para a sua vitória tangencial (à liderança do partido). Segundo, todavia, mais importante foi a tibieza da sua vitória e a necessidade de inúmeros equilíbrios para unir um partido cheio de backbenchers pró-Blair, daqui tendo resultado uma mensagem política carregada de ambiguidades e a imagem de um líder fraco. Terceiro, a rejeição das políticas de austeridade e dos cortes nos gastos públicos foi tudo menos clara, nomeadamente porque Ed comprou a narrativa, cara à direita, segundo a qual a crise após 2008 se deveu, pelo menos parcialmente, a um excesso de gastos públicos, e, por isso, o New Labour, a marca da era Blair, permaneceu NL e não ficou só Labour como advogam alguns por terras lusas. Pelo contrário, em quarto lugar, a estratégia vitoriosa do SNP combinou o nacionalismo com um forte discurso anti-austeridade e uma verdadeira recentragem à esquerda, o que demonstra que o abandono do centrismo ideológico e uma efetiva inflexão à esquerda também podem ser pagadores. Aconteceu na Escócia! Finalmente, do meu ponto de vista, Ed cometeu um erro crasso que não fez jus ao melhor da herança de Tony Blair, ou seja, que não esteve à altura das reformas institucionais no sentido da devolução que abriram caminho a uma via federalista no RU: o NL comprou a narrativa que lhe foi imposta por Cameron, de demonização do SNP, e assim sinalizou ao eleitorado a falta de aliados consistentes, em caso de necessidade de uma coligação, e deixou a estratégia para a via federalizante exclusivamente nas mãos dos Tories.

Mais do que uma grande mudança no clima da opinião pública, as recentes eleições inglesas traduziram fundamentalmente as distorções geradas pelas regras eleitorais, mas também a ambiguidade e falta de assertividade dos trabalhistas. Por cá também há quem, nos grande conglomerados mediáticos e entre a sua vanguarda jornalística, queria comprimir ainda mais o pluralismo político-ideológico, e a inovação política, nos mass media, recusando uma cobertura jornalística das eleições de 2015 que trate equitativamente as várias candidaturas e cumpra assim as suas obrigações constitucionais e democráticas. Mas esta é matéria para o próximo artigo.            

Politólogo, Professor do ISCTE-IUL

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