A 2.ª Circular na Europa

Não há espaço para moderação quando falamos na Grécia. Não deveria ser assim.

Um espírito de derby abateu-se sobre a imprensa portuguesa a propósito de um dos temas quentes da agenda internacional: as negociações entre o Governo grego e as instituições europeias, capitaneadas, a partir de Berlim, pelo executivo alemão, sobre o futuro do resgate e sobre o financiamento da Grécia a curto prazo. Dois lados esgrimem argumentos com a mesma convicção e racionalidade demonstradas nos debates desportivos das noites de segunda-feira dos canais informativos portugueses.

Entre as prosas mais sonantes dos últimos dias, destacaria, por um lado, as descrições exaustivas acerca da propensão dos gregos para incumprir as suas obrigações e, por outro, as declarações que defendem que os portugueses têm no Governo de Atenas o seu verdadeiro representante. Estas duas ideias acabam por sintetizar bem o pensamento que domina cada um dos lados da barricada.

Depois de quase um mês de opinião sobre o tema, as premissas de cada parte resumem-se a dois argumentos opostos:

– A Grécia pediu dinheiro emprestado e tem de cumprir as suas obrigações, custe o que custar. Cabe aos parceiros europeus demonstrar inflexibilidade para dobrar Atenas e, com isto, dissuadir atitudes semelhantes. Este discurso paternalista assenta numa analogia entre uma estrutura complexa como um Estado soberano (integrado numa união monetária) e uma mercearia de bairro ou uma família moralmente impoluta que paga todas as contas a tempo e ainda consegue poupar uns tostões (ou cêntimos);

– A Grécia foi saqueada pelos credores internacionais e há um plano, gizado por Berlim, para sufocar Atenas e para dominar politicamente a Europa. A máxima desta ideia intelectualmente pouco séria é expressa através de frequentes associações entre o actual comportamento alemão e o expansionismo nazi e fascista que manteve a Grécia sob ocupação total ou parcial entre 1941 e 1945.

As duas linhas argumentativas colocam-nos, pois, no plano de um debate futebolístico bipolarizado. O duopólio assegurado pela argumentação radical é incontornável. Quando é apresentada uma crítica a um dos lados, imediatamente, o crítico em questão é associado ao outro extremo. Não há espaço para moderação quando falamos na Grécia. Não deveria ser assim. Observar, com algum distanciamento, o trabalho desenvolvido, durante décadas, no âmbito de algumas Ciências Sociais (História, Relações Internacionais e Ciência Política) deveria ser suficiente para dissuadir extremismos analíticos e assumir que a discussão tem sido marcada por discursos que partem de pressupostos errados. Vejamos:

A Grécia deve cumprir as suas obrigações? Sim, “deve” cumprir. O erro está na utilização do verbo “ter” no lugar do verbo “dever”. A Grécia é um Estado soberano e, pasme-se, organizado através de um sistema democrático representativo. Os gregos não são membros de uma só família ou accionistas de uma empresa preocupados com uma eventual bancarrota. São, isso sim, cidadãos que, enquanto eleitores, votam tendo em conta variáveis que não são exclusivamente económicas. 

O “bolso” conta muito na hora de votar. No entanto, depois de cinco anos a sentir-se maltratados pelos parceiros europeus, os gregos consideraram que era tempo de dizer “basta”. E não se limitaram a dizer “basta” às lideranças europeias. Disseram-no sobretudo à classe política que dominou o Estado nos últimos 40 anos. Por muito que Berlim e Bruxelas considerem um acto de loucura, no limite, os cidadãos da Grécia são livres de optar por abandonar a zona euro e até a União Europeia. É uma decisão exclusivamente sua, ditada por argumentos bem mais complexos do que a mera lógica dos números (ao contrário do que costuma ocorrer nos manuais de macroeconomia).

O argumento adversário é igualmente descabido, como o tem comprovado a moderação do comportamento do Syriza desde que está no Governo. A inflexibilidade alemã não se prende com razões de domínio político efectivo. Resulta de um processo histórico que faz da estabilidade monetária o ponto central das políticas económicas e financeiras herdadas da “velha” Alemanha Ocidental, políticas estas que tinham sido ditadas pelo pânico em relação a processos hiperinflacionários. A chanceler Angela Merkel foge da política externa excepto nas questões relativas à crise das dívidas soberanas e a problemas com potencial para gerar instabilidade em países vizinhos (o que explica o seu empenho na resolução do conflito ucraniano). Berlim, essencialmente, teme o caos financeiro na Europa e as consequências que este pode gerar para a sua economia.

Obviamente, bancos alemães lucraram com as dívidas dos países do Sul da Europa e muitos investidores optaram por refugiar-se na estabilidade dos seus títulos da dívida. Também é evidente que o peso da Alemanha foi reforçado pelo contexto de crise. Entre 2008 e 2015, a expressão “eixo franco-alemão”, que marcara décadas de história da integração europeia, pura e simplesmente desapareceu do léxico político da União. O debate, actualmente, é económico e financeiro e o mais forte neste campo torna-se ainda mais forte. O comportamento alemão é sobretudo orientado para a manutenção do próprio potencial económico, por ser aí que reside o seu poder. Convém não esquecer que os alemães foram obrigados a abdicar de um eventual estatuto de potência política e militar durante a Guerra Fria e que optaram por não recuperar esse estatuto, em 1990, aquando da unificação.

Nos próximos dias, saberemos mais sobre a crise grega. Não tenho a menor dúvida de que o caminho político será feito num quadro de moderação e que o tempo provará que nenhuma das posições radicais era senhora da verdade.

Professor de Relações Internacionais, UAL e ISCTE-IUL

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