Totalitarismo cultural, vacuidade e alienação política

Como é natural e compreensível, por altura do Mundial de futebol a atenção de muitas pessoas e dos mass media, pelo menos nos países onde tal desporto faz as delícias de uma grande parte da população, tem estado centrada no dito evento.

O que é menos compreensível e aceitável, seja do ponto de vista da qualidade dos produtos televisivos, seja do ponto de vista do tratamento dado aos vários segmentos da população (maiorias e minorias), é o nível de atenção que as televisões portuguesas dão geralmente a este desporto, seja neste período especial, seja em períodos “normais”. Neste momento, podemos questionar-nos sobre se será ética e politicamente aceitável que a TV pública de um país com severas restrições financeiras pague tanto para ter o monopólio das transmissões televisivas dos jogos, gastando para isso “parte significativa do orçamento para conteúdos” (Eduardo Cintra Torres, Correio da Manhã, 28/6/14), naturalmente em detrimento do apoio à produção cultural portuguesa. Mas o problema nem sequer é só financeiro ou ético-político, e nem diz respeito apenas à transmissão dos jogos. Diz respeito também à profusão desmesurada de programas de debate sobre futebol, que se multiplicam seja nas televisões generalistas, seja nos canais do cabo, e, sobretudo, à ocupação opressiva e patológica, porque esmagadora, dos espaços noticiosos com “notícias” sobre futebol. Claro que isto não é de agora, mas tem atingido o paroxismo nos tempos mais recentes. Mais, quando se esperava que TV pública marcasse a diferença face às privadas, o que vemos é a RTP1 a liderar o estilo tablóide. Este tema permite-nos pois abordar a qualidade das televisões portuguesas, o grau em que o serviço público serve maiorias e minorias e se se eleva, ou não, acima da pura obsessão com as audiências. Globalmente, esta reflexão permitirá analisar ainda o contributo dos mass media televisivos para a (fraca) qualidade da cidadania em Portugal.

Totalitarismo cultural

O problema não é de agora, mas atingiu, como disse atrás, nos tempos mais recentes, o paroxismo e, pasme-se, a deriva totalitária tem sido liderada pela RTP1. Há tempos perguntei a um amigo norueguês como é que eram os noticiários televisivos no seu país, ou seja, se, tal como aqui, eles começavam regularmente e, por vezes (não poucas), também acabavam com “notícias” sobre futebol (ou apenas sobre desporto). Ele disse-me que não, que os espaços noticiosos televisivos no seu país reservam geralmente apenas e só uma pequena parte, no final, do noticiário para o desporto. Em tempos, creio que também foi assim em Portugal, nomeadamente nos tempos em que os noticiários tinham uma duração “normal” (30 minutos). Hoje em dia, e não é só no período do Mundial, é usual começarem os noticiários com “notícias” sobre futebol… e amiúde voltarem ao tema no meio e/ou no fim dos mesmos. Um exemplo: o dia 23 de Maio de 2014, ou seja, o último dia da campanha eleitoral para as europeias, era, simultaneamente, véspera da Liga dos Campeões europeus entre o Atlético e o Real de Madrid, disputada no Estado da Luz. E o que era mais importante do ponto de vista dos responsáveis da TV pública? A final dos campões, claro: abriu com o tema, esteve nele cerca de 20-25 minutos, depois deu cerca de cinco minutos de europeias e voltou ao tema “futebol”. Durante o Mundial, este registo tem sido “o pão nosso de cada dia”, com variações naturalmente, sobretudo no canal generalista da TV pública e pelo menos até a seleção portuguesa ter sido humilhada e recambiada. Claro, apesar de a RTP1 liderar esta deriva patológica e obsessiva, os outros canais, abertos e no cabo, seguem a mesma partitura… A opressão totalitária é também visível em certos dias da semana em que se vai mudando de canal e encontrando sempre o mesmo: debates sobre futebol… Apesar de pagarem taxas e mensalidades tal como os outros, e de serem cidadãos como os demais, as minorias, para respirarem, têm de ligar os canais de notícias estrangeiros (France 24, BBC News, Al-Jazira, CNN, etc.) onde os noticiários ainda têm uma duração “normal” e as notícias e os debates sobre o desporto ocupam uma muito pequena parte da programação, noticiários incluídos.

Vacuidades

Deliberadamente, falei em “notícias” sobre futebol com aspas: as mais das vezes são da mais pura vacuidade, da mais pura indigência mental, verdadeiros atentados à inteligência das pessoas. Vejamos dois exemplos, que bastam por si e que, mutatis mutandis, são recorrentes. No dia em que a seleção portuguesa partiu de Lisboa rumo aos EUA, para uma espécie de treinos para o Mundial, a mesma foi primeiro ao Palácio de Belém receber a “bênção” presidencial. Pois o noticiário da hora de almoço da RTP1, tal como os das outras televisões ainda que em menor grau, levou entre pelo menos uma vintena a uma trintena de minutos a filmar o autocarro (as traseiras, a frente, os lados, os jogadores acenando de dentro, etc.) indo da sua origem até ao palácio presidencial (há maior vacuidade?). Outro exemplo são as reportagens no e sobre o Mundial que, em regra, filmavam e questionavam, à exaustão, adeptos, seguranças, transeuntes e, sobretudo, os “oráculos”. O “óraculo-mor”, Cristiano Ronaldo, era inquirido a torto e a direito sobre o que se tinha passado e, sobretudo, sobre o futuro. Nesta linha, disse ele antes da humilhação portuguesa que este seria “o ano da seleção” e, depois da dita, que nunca tinha dito que a seleção tinha grandes possibilidades, pois ele até achava que ela era fraca e tinha feito um percurso sofrido até ao apuramento. Sobre vacuidades e insultos à inteligência creio que não será necessário aduzir mais.

Alienação política

O facto de, no último dia da campanha para as europeias, o principal noticiário da RTP1 ter dado uma atenção desmesurada à final da Liga dos Campões europeus em detrimento das europeias, diz muitíssimo sobre o papel da TV pública, em particular, e das televisões generalistas (sobretudo), em geral, na degradação da cultura política e do sentido de cidadania dos portugueses. E, pior do que tudo, este registo é recorrente, basta lembrar que mesmo nos períodos “normais” cerca de 30% do noticiário (no prime time dos canais generalistas), ou mais, é geralmente gasto com vacuidades (por entre algumas, poucas, notícias) sobre futebol.

Mas vale a pena ilustrar a tendência para a alienação política na TV portuguesa com o que não se disse, ou se subalternizou completamente, acerca do Mundial de futebol. Na CNN, Fareed Zakaria falou-nos da fiscalidade privilegiada de clubes e associações (FIFA, UEFA, Liga de Clubes, FPF, etc.) ligados ao futebol – ou seja, apesar de serem claramente organizações que movimentam milhões e geram enormes lucros, são tratadas como organizações não lucrativas e, portanto, têm regimes fiscais altamente favoráveis (leia-se: são financiadas pelos contribuintes), quando deviam ser tratadas como organizações lucrativas que efetivamente são. Num país alvo de severíssimos programas de austeridade não teria sido pertinente pensar sobre o contributo destas organizações para o esforço de equilíbrio das contas? Nada vi, porém, nas TV portuguesas… Aliás, a ligação da FIFA aos grandes interesses económicos (para a geração de lucros chorudos) estará patente em dois traços chave deste Mundial. Primeiro, crê-se que muitos dos jogos terão sido realizados à torreira do sol para assegurar (lucrativas) transmissões diretas para a Europa: será verdade? Segundo, a Budweiser e a FIFA obrigaram o Governo brasileiro a suspender a legislação autóctone que proíbe a venda de bebidas alcoólicas em estádios. Alguém falou destes assuntos nas TV portuguesas? Nada vi…

Um último tópico que recebeu muito pouca análise das TV portuguesas, mas que a BBC News relevou com uma grande reportagem: num país com cerca de 1/5 das pessoas a viver na pobreza, em morros e favelas, e uma enorme fatia de crianças canalizadas para a prostituição de menores, é de facto escandalosa a realização deste Mundial, e por isso tantos brasileiros se mobilizaram contra o evento. Em Portugal, foi um quase mutismo sobre as razões da contestação à realização da "Copa" do Mundo (com inúmeros estádios que custam milhões e não irão servir para nada) num país com as carências do Brasil. Por cá, também tivemos o nosso monumental desperdício de dinheiros públicos com os estádios para o Euro 2004. Mas, na altura, quais foram as vozes (audíveis) e as mobilizações críticas entre a oposição, o jornalismo e a cidadania? Ou seja, os problemas nas contas portuguesas não são apenas da responsabilidade dos políticos, são-no também dos media e dos cidadãos… e a degradação da democracia e da cidadania também…

Politólogo, ISCTE-IUL (andre.freire@meo.pt)

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