Por que se forma osso em excesso na síndrome do ‘homem de pedra’?

É uma doença rara, em que cresce osso onde não devia, tornando os movimentos impossíveis. O caso mais famoso é o de Harry Eastlack, que doou o esqueleto à ciência. Uma equipa descobriu agora um aspecto-chave na formação destas ossificações e criou um anticorpo para as tentar evitar.

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A amarelo, osso anormal formado em ratinhos em experiências LiQin Xie e Nanditha Das
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A amarelo, osso anormal formado em ratinhos em experiências LiQin Xie e Nanditha Das
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O esqueleto de Harry Eastlack, que está no Museu Mütter, em Filadélfia Cortesia de A.B. Shafritz <i>et al.</i>/<i>New England Journal of Medicine</i>, 1996

Cientistas da empresa de biotecnologia norte-americana Regeneron Pharmaceuticals têm investigado uma doença genética muito rara, que aprisiona os doentes num segundo esqueleto, e agora desenvolveram um tratamento – ainda bastante experimental – capaz de parar o crescimento do excesso de osso em ratinhos. O trabalho foi publicado na revista Science Translational Medicine.

Esta doença designa-se por fibrodisplasia ossificante progressiva (FOP), e também lhe chamam síndrome homem de pedra”, ainda que afecte qualquer pessoa em qualquer parte do mundo. É letal, uma vez que os tecidos dos músculos, dos tendões, dos ligamentos e de outros tecidos moles vão sendo substituídos progressivamente por osso – formando um esqueleto extra, que vai incapacitando e imobilizando os doentes. Têm dificuldade em abrir a boca, em comer, em falar. Em movimentarem-se, à medida que as articulações se vão fundindo. Em respirar, porque a caixa torácica vai ficando rodeada por osso que não devia estar aí. Até que geralmente morrem por asfixia.

À nascença, as crianças parecem normais, excepto a existência de malformações congénitas dos dedos grandes dos pés, mas ainda na infância começam os episódios dolorosos e recorrentes de inchaço dos tecidos moles (surtos), por exemplo na sequência de uma queda, e a formação anormal de osso. Esse processo é conhecido como ossificação heterotópica (localização anormal). A esperança média de vida é de cerca de 40 anos.

Actualmente, estão confirmados 800 casos de fibrodisplasia ossificante progressiva no mundo inteiro, incluindo cerca de 200 nos Estados Unidos. Estima-se, no entanto, que uma pessoa em cada dois milhões no mundo tenha esta doença, segundo os Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos.

Harry Eastlack (1930-1973)
O caso mais famoso é o do norte-americano Harry Eastlack. “Em 1935, Harry, então com cinco anos, partiu uma perna enquanto brincava com a irmã. A fractura foi mal consolidada, de onde resultou o fémur esquerdo arqueado. Pouco tempo depois, a anca e o joelho tornaram-se igualmente rígidos. A rigidificação não foi, porém, causada pela fractura original, mas antes por depósitos ósseos que se formaram nos seus músculos adutores e nos quadríceps”, conta o biólogo Armand Marie Leroi no seu livro Mutantes – Forma, Variações e Erros do Corpo Humano (Gradiva).

“À medida que Harry foi ficando mais velho, os depósitos ósseos foram-se-lhe disseminando pelo corpo, consolidando-se nas nádegas, no tronco, no pescoço e nas costas. Em 1956, a sua perna esquerda e a anca estavam já totalmente imobilizadas; o seu tronco dobrou-se permanentemente num ângulo de 30 graus; formaram-se pontes ósseas entre as vértebras, e os músculos das costas transformaram-se em camadas ósseas”, prossegue o relato do livro. “Realizaram-se tentativas de excisão cirúrgica do osso, mas ele voltou a crescer – mais duro e mais omnipresente do que antes. Aos 23 anos, foi internado numa instituição especializada em incapacidades crónicas. Quando morreu, em 1973, os maxilares haviam-se-lhe imobilizado e já não conseguia falar.”

Harry Eastlack quis dar o seu esqueleto para a investigação científica – e que se encontra no Museu Mütter do Colégio de Médicos de Filadélfia, nos Estados Unidos. “(…) Trata-se, na verdade, do esqueleto de um homem de 40 anos enclausurado noutro esqueleto, este rudimentar e desordenado”, lê-se ainda em Mutantes. “Os corpos dos pacientes de FOP não respondem de forma normal aos traumas sofridos nos tecidos. Equimoses e entorses, em vez de serem reparadas com tecido adequado, são-no com osteoblastos [células ósseas], e o novo tecido transforma-se em osso.”

No início, a doença era designada miosite ossificante progressiva, que significava que os músculos se transformavam progressivamente em osso. Mas o nome foi oficialmente alterado na década de 1970, uma vez que outros tecidos são afectados, como os tendões, conta-se no site da Associação Internacional de Fibrodisplasia Ossificante Progressiva (Ifopa).

Há uma outra forma de miosite ossificante — mas é de origem traumática, em que os músculos passam a osso em zonas lesionadas, sejam essas lesões grandes ou pequenas, agudas ou crónicas. É o caso de Rúben Forte, noticiado, este Agosto, pelo jornal “Expresso” e pela SIC. Aos 13 anos, depois de ter sido atropelado em 2014 por um camião, que lhe esfacelou a bacia e a perna esquerda, e de uma longa cirurgia e recuperação no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, o músculo da zona traumatizada começou a transformar-se em osso. Mais de 45 hospitais recusaram fazer-lhe a nova cirurgia que precisava, talvez devido à extensão do problema e a uma deficiência na coagulação sanguínea. Ainda que a hipótese de sobreviver fosse baixa, o Hospital de Santa Maria avançou: a perna esquerda e metade da bacia foram amputadas. E Rúben Forte sobreviveu.

Já a fibrodisplasia ossificante progressiva é causada por mutações no gene ACVR1, que comanda o fabrico de um receptor – uma proteína – nas células responsáveis pelo crescimento do osso. Por isso, o receptor tem deficiências. É constituído por 509 aminoácidos (os tijolos das proteínas) e na mutação mais comum que provoca a fibrodisplasia ossificante progressiva ocorre apenas a troca de um único aminoácido (uma arginina para uma histidina), com efeitos catastróficos.

Foi só em 2006 que o gene ACVR1 e a troca de um único aminoácido que origina a doença foram identificados como responsáveis pela doença, num trabalho publicado na revista Nature Genetics, por uma equipa internacional coordenada por Eileen Shore e Frederick Kaplan, da Faculdade de Medicina da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos.

O receptor e a activina-A
Já se pensava que as mutações do receptor estariam implicadas na sua actividade anormalmente elevada. Mas se haveria uma outra molécula que se ligava a esse receptor e desencadeava a doença era algo que se mantinha desconhecido até agora.

Ora o que a equipa da Regeneron Pharmaceuticals agora descobriu foi precisamente que o receptor mutado tem uma resposta anormal quando está na presença da proteína activina-A, que é um factor de crescimento segregado pelo sistema imunitário em reacção à inflamação e a ferimentos. Normalmente, a activina-A bloqueia o receptor, pondo um travão ao crescimento de osso. Só que em pessoas com a mutação no gene ACVR1, a activina-A tem o efeito oposto e desencadeia um crescimento hiperactivo do osso.

“É como se os travões tivessem uma ligação directa ao acelerador”, disse à agência Reuters Aris Economides, director executivo da Regeneron Pharmaceuticals, com sede em Tarrytown, no estado de Nova Iorque.

Esta descoberta explica por que é que, em resposta a ferimentos e doenças que provocam inchaço ou inflamação de tecidos, os doentes de fibrodisplasia ossificante progressiva têm crises de formação anormal de osso. Nessas situações, há a segregação de activina-A, só que o problema é que, quando existem mutações no gene ACVR1 e, consequentemente na proteína que codifica, o factor de crescimento origina a formação indevida de osso. É também por essa razão que as intervenções cirúrgicas de remoção destas ossificações, ao causarem a inflamação e a produção de activina-A, costumam originar episódios agressivos de formação de osso e são, por isso, contra-indicadas. Não há medicamentos específicos para a doença e os que se usam são apenas para controlar as dores.

Para obter estes resultados, a equipa da empresa de biotecnologia criou ratinhos geneticamente modificados para desenvolverem osso em excesso de forma semelhante à fibrodisplasia ossificante progressiva, com a mutação no gene ACVR1. E, quando os investigadores implantaram nos ratinhos pequenas esponjas de colagénio ensopadas de activina-A, desencadeou-se realmente o desenvolvimento de osso.

Num outro passo da investigação, a equipa desenvolveu um anticorpo humano específico para bloquear a activina-A. Quando esse anticorpo foi injectado nos ratinhos que tinham desenvolvido a doença, o fármaco conseguiu bloquear o crescimento anormal de osso. Esse efeito prolongou-se até durante seis semanas.

Aris Economides, entre os autores do artigo, considerou que estes resultados vão conduzir um dia a um tratamento da doença. “O nosso anticorpo humano para a activina-A representa uma abordagem terapêutica potencial para a fibrodisplasia ossificante progressiva”, lê-se no artigo.

Betsy Bogard, directora de investigação e desenvolvimento da Associação Internacional de Fibrodisplasia Ossificante Progressiva, e irmã de um doente, considerou estes resultados “incrivelmente entusiasmantes”, dizendo que explicam alguma da ciência por trás desta doença e que representam uma nova hipótese terapêutica. Mas Betsy Bogard, antiga responsável de uma empresa farmacêutica, também citada pela Reuters, mantém-se cautelosa. “O caminho do desenvolvimento de medicamentos é longo e difícil. Ainda há muito para aprender.”

Embora a empresa de biotecnologia não revele pormenores nem prazos, a sua porta-voz, Alexandra Bowie, igualmente ouvida pela Reuters, informou que estão em curso testes pré-clínicos (para determinar doses seguras antes dos testes em pessoas) e que a empresa espera avançar para ensaios clínicos, que já são em seres humanos.

Uma empresa de Montreal, no Canadá, a Clementia Pharmaceuticals, também tem estudado a fibrodisplasia ossificante progressiva e já está a testar em doentes um composto químico chamado palovaroteno, ainda segundo a Reuters. Adquirido à empresa farmacêutica Roche, que inicialmente o testou para reparar os pulmões de doentes com enfisema, este medicamento (que interage com um receptor gama do ácido retinóico) bloqueou a formação de osso em ratinhos que funcionavam como modelo da doença.

Na União Europeia, e para tratar a FOP, o palovaroteno recebeu no final de 2014 a designação de “medicamento órfão”, que é atribuída por exemplo em caso de doenças raras (ou “doenças órfãs”, que na Europa são definidas como afectando menos de uma pessoa em 2000). Por razões económicas, estes medicamentos não seriam investigados e desenvolvidos sem incentivos à indústria farmacêutica.

O palovaroteno está agora a ser testado em doentes, em ensaios clínicos de fase 2, que se centram na eficácia do medicamento, procurando determinar as doses e o melhor método de administração, além de informação sobre a sua segurança, efeitos secundários e potenciais riscos.

No mês passado, a Clementia Pharmaceuticals alargou o ensaio clínico para incluir crianças a partir dos seis anos e anunciou que, no segundo semestre de 2016, espera iniciar ensaios clínicos de fase 3, que averiguam os resultados dos ensaios clínicos anteriores em populações maiores e recolhem mais informação sobre a eficácia e segurança do medicamento experimental.

Se de todas estas investigações científicas vier a sair o primeiro medicamento para a fibrodisplasia ossificante progressiva, Harry Eastlack contribuiu para esse longo caminho. Viveu toda a vida em Filadélfia, com os pais e a irmã. A equipa que identificou o gene ACVR1 só o conheceu pelo esqueleto, como se conta no site da Associação Internacional de Fibrodisplasia Ossificante Progressiva. “O esqueleto de Harry é como a Esfinge. Mantém-se silencioso e elegante e, se soubermos fazer as perguntas certas, revela os seus segredos”, dizia àquele site Frederick Kaplan, visitante frequente do Museu Mütter.

“Quando descobríamos alguma coisa importante sobre a FOP no laboratório, voltávamos a visitar o esqueleto de Harry para confirmar a descoberta. Noutras alturas, podíamos descobrir alguma coisa sobre o esqueleto de Harry que nos punha a correr para o laboratório, para testar uma nova hipótese sobre a FOP”, acrescentava o cientista sobre o trabalho de identificação do gene, uma investigação de 15 anos. “O legado de Harry deu significado e profundidade à investigação médica e científica muito para lá da sua existência. Abençoo a sua memória de cada vez que visito o museu onde o seu legado continua a educar e a inspirar.”

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