Mark McCaughrean: A aterragem no cometa 67P foi o “momento Apolo” para os mais jovens

O fascínio pelo espaço e uma missão como a Roseta podem aproximar os cidadãos da ciência e do pensamento racional necessário para salvar o mundo, defende o astrofísico Mark McCaughrean, que esteve em Lisboa para dar uma palestra.

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O astrofísico Mark McCaughrean Nuno Ferreira Santos

Encontrámos Mark McCaughrean no hall do Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa, antes de dar uma palestra. O astrofísico é responsável pela comunicação e divulgação da ciência na Agência Espacial Europeia (ESA). Na década de 1990, com o telescópio Hubble, viu discos protoplanetários à volta de estrelas jovens, algo que ajudou a compreender o início do nosso sistema solar. Na palestra inaugural do ciclo de Conferências Ciência Viva, sempre na última quinta-feira de cada mês, Mark McCaughrean falou também sobre uma missão que nos transporta até ao início da história do sistema solar e da Terra: a missão da sonda Roseta, que está a estudar o cometa 67P/Churiumov-Gerasimenko.

Os cometas são uma mistura de gelo e poeiras, e podem ter ainda moléculas orgânicas. Estes objectos, que por vezes surgem no nosso céu, observados à vista desarmada, com uma cabeleira e uma cauda, foram criados no início do sistema solar. Muitos deles terão chocado contra a Terra e poderão ter alimentado o nosso planeta com água e matéria orgânica – o material da vida. A sonda Roseta foi estudar uma destas criaturas. Lançada em 2004, só alcançou o 67P em Agosto passado. E a 12 de Novembro libertou a pequena sonda File que, com algumas atribulações, aterrou no núcleo do cometa, num feito inédito.

Durante três dias, a File trabalhou intensamente, depois adormeceu por falta de energia. A Roseta continua a trabalhar à volta do 67P. Em Agosto próximo, o cometa atingirá o ponto mais próximo do Sol, entre Marte e a Terra, e estará no pico da sua actividade, com o Sol a provocar a evaporação do gelo, num processo que atira material para o espaço. Vai ser um momento único para a Roseta observar. Mas para Mark McCaughrean, responsável pela comunicação desta aventura, a popularidade da missão poderá ser ainda mais importante do que os seus resultados científicos: a Roseta e a File trouxeram o fascínio pelo espaço a muitas pessoas, e o mundo até já pode ter ganho futuros cientistas.

Por que é que a descoberta de discos planetários em estrelas foi um marco, em 1995?
A Terra gira em torno de uma estrela e sabemos que os outros planetas do sistema solar giram na mesma direcção e estão todos num plano horizontal. Isso significa que se formaram a partir de um disco [de matéria] há 4500 milhões de anos. Mas isso era uma teoria. Seria possível provar que os planetas estavam a formar-se da mesma maneira à volta de outras estrelas? Conseguimos obter as primeiras imagens de discos à volta de estrelas jovens com um milhão de anos na nebulosa de Oríon. Estes discos são circulares, elípticos, ou têm a forma de um charuto. Fomos os primeiros a provar que o modelo estava certo: as estrelas têm discos e os planetas vêm desses discos.

E quando entrou na ESA?
Em 2009, como responsável da ciência das missões da ESA no sistema solar. No último ano tornei-me o consultor sénior de ciência da agência. Sou o porta-voz que fala sobre a ciência da ESA às pessoas que pagam as nossas contas – os políticos –, à indústria que constrói as naves e ao público em geral. Parte disso é muito técnico. Mas quando se fala para o público em geral o objectivo é inspirar as pessoas. Os meus colegas dizem que devemos inspirar as pessoas para elas apoiarem os programas espaciais. Mas acho essa ideia completamente errada. O que devemos fazer é usar o espaço como uma porta de entrada para a ciência para envolver as crianças, os jovens e os adultos, para que percebam que a ciência é um instrumento fundamental para compreender o Universo. Esta é a grande questão: o pensamento científico, o pensamento racional que a ciência usa para resolver problemas, é fundamental para salvarmos o nosso planeta.

Por que precisamos de salvar a Terra?
Porque estragámos o planeta. E observa-se um afastamento entre as pessoas e a ciência. As pessoas dizem: “Não sei reparar a Terra, não quero reparar a Terra, quero apenas ver televisão e beber coca-cola”. E a única forma de repararmos a Terra é através da ciência e da política. E a melhor forma de persuadir os políticos acerca da ciência é através dos seus filhos. Precisamos de mais ciência na política e na cultura. Senão, estamos lixados.

Quais são os problemas?
As alterações climáticas, o crescimento da população, o esgotamento dos recursos. Estamos envolvidos neste ciclo permanente de crescimento que a Terra não consegue suportar. E parece simplesmente que a nossa cultura está a ignorar o que está a acontecer.

Que relação há entre a missão Roseta e salvar a Terra?
Como é que se comanda uma nave espacial para voar até a um cometa a velocidades tão altas? Não se consegue fazer isto só porque o desejamos. Faz-se com cálculos, com o trabalho difícil e demorado ao longo de 30 anos. Não acontece de hoje para amanhã. É este tipo de dedicação que vamos precisar, numa escala muito maior, para salvar o planeta.

Qual o estado actual da Roseta?
A Roseta está a cerca de 30 quilómetros do 67P, que tem cerca de quatro quilómetros de diâmetro, por isso está distante dele, mas temos câmaras com uma resolução muito forte e podemos ver pormenores da superfície. No dia 3 de Fevereiro vamos começar preparar-nos para fazer um voo rasante que vai passar a seis quilómetros de distância da superfície. Nunca fizemos um voo tão perto da superfície e, provavelmente, a Roseta não voltará a tão próxima do cometa. Vamos obter as imagens com a maior resolução da superfície do cometa. 

Continuam a tentar entrar em contacto com a File?
Estamos a tentar ouvi-la. A File tem um transmissor, mas sabemos que não está a falar connosco. A sonda pousou a 12 de Novembro no cometa e funcionou durante três dias. Não conseguiu prender-se à superfície do cometa e ressaltou. Alguns cientistas acham que foi bom ela ter ressaltado porque o local inicial onde aterrou – queríamos que fosse o mais plano possível – era bastante aborrecido [do ponto de vista científico]. O que queríamos é que a File estivesse perto de gelo. E ao ressaltar e cair junto de um penhasco, acabou num sítio muito mais interessante.

E ela vai voltar a acordar?
A File precisa de seis horas de sol para carregar a sua segunda bateria. Para já, temos cerca de uma hora e meia de luz solar por dia, por isso poderia pensar-se que só seria necessário esperar quatro vezes mais para a bateria carregar. Mas a File precisa primeiro de ter energia suficiente para aquecer a bateria porque o ambiente é muito frio e uma bateria gelada não consegue carregar. Por isso há duas possibilidades. Uma é que ela passe a receber mais horas de luz por dia, isso é possível porque o cometa está a rodar e, à medida que se vai aproximando do Sol, a face que apanha mais sol pode mudar. Mas a grande esperança é que o cometa, ao aproximar-se do Sol, vá receber seis vezes mais luz. As previsões são que talvez em Maio ou Junho possa haver luz suficiente para aquecer e carregar a bateria da File.

Já se compreendeu a razão por que a aterragem não correu bem?
Os arpões não dispararam e há duas hipóteses para isso. Uma é que os explosivos [que fariam disparar os arpões] degradaram-se por terem estado no vácuo durante dez anos. Mas agora achamos que talvez tenha havido uma falha eléctrica – algum problema no software ou um cabo estragado.

Quais são as principais descobertas até agora?
Há uma semana saíram uma data de artigos científicos que estavam a ser preparados há alguns meses. Há algumas descobertas-chave. Uma tem que ver com a procura da origem de água na Terra. Cá, a água tem uma proporção muito particular entre o deutério [átomo de hidrogénio com um neutrão, um protão e um electrão, em vez de ter apenas um protão e um neutrão como a grande maioria dos átomos de hidrogénio] em relação ao hidrogénio [mais comum]. Se a água do 67P tivesse a mesma proporção de deutério da Terra, então seria deste tipo de cometas que a água da Terra veio. Mas a proporção no cometa é muito maior do que a da Terra. Por isso, este tipo de cometa não poderá ter alimentado a Terra com toda a sua água e terá havido uma mistura. Os cometas terão atingido a Terra, não há forma de isso não ter acontecido. Mas a Terra também foi atingida por asteróides – que normalmente têm uma proporção de deutério mais baixa. O que tem piada é que isto é boa ciência. Se o resultado obtido no cometa tivesse sido exactamente igual ao da Terra, então este ramo da ciência ficaria encerrado nos próximos 20 anos. Agora temos de pensar de novo: “De onde veio a água?” Talvez venha de uma mistura de cometas e asteróides. Isto mantém a ciência viva de uma forma muito interessante.

E que outras descobertas fizeram?
Na superfície do cometa vemos aquilo a que chamamos crateras. Mas não são crateras criadas por impactos vindos do exterior. O cometa aquece, cria pressão no seu interior e há uma espécie de explosão. Esperamos observar isso nos próximos meses. No fundo destas crateras há pequenos altos que fazem lembrar os altos da pele de galinha quando se fica com frio. No cometa, estes altos têm todos cerca de três metros. E isto obriga a pensar: “O que são estas unidades de três metros?” Poderão ser os pedaços originais que formaram o cometa. No início do Universo não havia cometas, apenas pedacinhos de pó e gelo que tiveram de se colar e crescer lentamente. Ainda não sabemos como é que este processo aconteceu de facto. O que parece é que os pedacinhos se agregaram até atingirem um diâmetro de três metros e depois iniciou-se um novo processo que parece ter juntado muitos destes pedaços de três metros num objecto único. Mas não sabemos que processo é este, isto é uma descoberta completamente nova.

Em resumo, qual é a importância da missão Roseta?
A missão Roseta é sobre a origem do nosso sistema solar, do nascimento do planeta onde vivemos e talvez até sobre nós próprios. Os materiais que estão guardados nos cometas nas regiões afastadas e escuras do sistema solar talvez possam ter sido um reservatório do qual nós nos formámos.

Mas penso que o maior significado da Roseta foi ter criado este momento especial, foi uma aventura que demorou dez anos, a sonda estava adormecida, teve de acordar e depois houve o dia da aterragem. A minha equipa foi responsável pela comunicação da missão. Conseguimos agarrar o mundo, a missão entusiasmou as pessoas de novo com o espaço. Pessoas mais jovens do que eu disseram que foi o seu “momento Apolo” [alusão à chegada do homem à Lua, em 1969], o dia em que algo relativo ao espaço aconteceu e aproximou o mundo. E neste aspecto, a questão vai muito além da ciência, é sobre o entusiasmo da descoberta, de tentar coisas difíceis. Durante três dias isso envolveu as pessoas. E talvez os miúdos que tenham visto isso desejem vir a ser cientistas.

Que questões científicas sobre o sistema solar a ESA vai tentar responder no futuro?
Uma das principais questões é se existe vida noutro lado além da Terra. Estamos a organizar duas missões a Marte em 2016 e 2018 chamadas ExoMars. Uma sonda vai analisar a atmosfera de Marte e procurar sinais de metano. O metano poderá ser produzido por microrganismos debaixo do solo. Não dura muito tempo na atmosfera, por isso tem de haver algo que esteja a produzi-lo, talvez seja a vida. Um robô lançado em 2018 vai perfurar o solo dois metros para retirar material. Se existir vida em Marte, ela não pode sobreviver na superfície por haver muita radiação. Por isso, tem de estar debaixo da superfície.

Temos também uma missão que vai a Júpiter olhar para as luas onde sabemos que existem oceanos a centenas de quilómetros de profundidade por baixo de camadas de gelo. Na base daqueles oceanos podem existir vulcões, que poderão fornecer calor para a vida. 

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