Imagens cerebrais detectam centelhas de consciência em doentes vegetativos

Num pequeno estudo – o primeiro do género –, uma técnica de visualização da actividade cerebral revelou sinais de consciência num terço dos doentes em estados vegetativos considerados irrecuperáveis pelas avaliações clínicas convencionais.

Foto
No filme Fala com Ela, a protagonista encontra-se em estado vegetativo DR

Uma das personagens centrais do filme Fala com Ela, do espanhol Pedro Almodóvar, é uma jovem mulher em estado vegetativo. Há anos que está deitada, como adormecida, no quarto da clínica especializada onde é tratada e alimentada. Apesar de por vezes abrir os olhos ou até de se mexer, não reage a qualquer estímulo e ninguém pensa que volte a acordar um dia. E no entanto, é isso mesmo que acontece.

Actualmente, os doentes com graves lesões cerebrais que entram em coma (na sequência de um traumatismo ou de um AVC), são avaliados através de testes clínicos normalizados, mas que estão longe de ser infalíveis. É por isso que certos doentes, que a seguir passam para um coma prolongado ou “estado vegetativo persistente” (como no filme de Almodóvar) podem ter sido erradamente considerados como desprovidos de qualquer vestígio de consciência, quando na realidade ainda lhes resta alguma, talvez mínima mas suficiente para que estejam a sofrer de forma “velada”. Algo que, antes de mais, tem implicações éticas.

Com o objectivo de melhorar a precisão da avaliação convencional destes doentes, cuja taxa de erro se estima poder atingir os 40%, uma equipa internacional de cientistas decidiu testar, pela primeira vez, uma técnica de imagiologia funcional do cérebro para tentar diagnosticar melhor o estado de consciência de doentes vegetativos que não reagem aos estímulos e tentar prever o seu potencial de recuperação.

Os resultados, que foram publicados esta terça-feira à noite na revista médica The Lancet, mostram que esta e outras técnicas de imagem poderão vir, no futuro, a permitir distinguir com bastante maior eficácia, entre os doentes vegetativos que não respondem aos estímulos, aqueles que realmente se encontram num estado vegetativo irrecuperável (estado também designado, em inglês, por unresponsive wakefulness syndrome) daqueles que estão minimamente conscientes e têm portanto maiores hipóteses de melhorar.

A técnica utilizada, baptizada FDG-PET, consiste em realizar uma “tomografia por emissão de positrões” (PET) injectando, para obter as imagens, um composto chamado fluorodeoxiglucose (FDG) no organismo do doente, que permite visualizar o metabolismo da glucose (açúcar) no organismo. É utilizada em doentes com cancro para detectar os tumores malignos, ávidos de glucose. E quando aplicada ao cérebro, permite mapear os níveis de actividade cerebral, também ávida da energia fornecida pela glucose – e, focando-se nas áreas envolvidas na produção da consciência, detectar os seus sinais ou a ausência deles.

“Os nossos resultados sugerem que a PET consegue revelar processos cognitivos que não são visíveis nos tradicionais testes clínicos, podendo portanto completar de forma substancial as habituais avaliações comportamentais na identificação dos doentes vegetativos que não reagem aos estímulos mas que têm um potencial de recuperação a longo prazo”, diz Steven Laureys, da Universidade de Liège, na Bélgica, o líder do estudo, num comunicado da revista médica.

Estados de consciência
Laureys e colegas testaram o potencial desta técnica em 126 doentes com graves lesões cerebrais vindos de toda a Europa. Entre eles, 81 encontravam-se, após aprofundadas avaliações clínicas, no estado dito de “consciência mínima”; 41 em estado vegetativo (sem resposta aos estímulos) e quatro sofriam da chamada “síndrome de encarceramento”. Neste último estado, a consciência permanece intacta mas o doente encontra-se literalmente preso num corpo que não reage a nada. O filme francês O Escafandro e a Borboleta relata um caso verídico desta trágica condição.

Diga-se já agora que Laureys, que chefia o grupo de neurologistas que estuda os estados de coma no hospital universitário de Liège, já tinha descoberto, há uns anos, graças à utilização pioneira de uma outra técnica de imagem – a ressonância magnética funcional (fMRI) –, que Rom Houben, um dos seus doentes supostamente em estado vegetativo, sofria há 23 anos de síndrome de encarceramento.

No presente estudo, os cientistas também puseram esta técnica à prova, mas concluem que, na distinção entre estados minimamente conscientes e vegetativos irrecuperáveis, a FDG-PET é bastante mais fiável do que a fMRI. De facto, esta técnica conseguiu identificar correctamente 93% dos doentes em estado de consciência mínima e conseguiu prever correctamente, em 74% dos casos, qual seria o estado de recuperação dos doentes passado um ano. Mais importante foi o facto de um terço dos doentes inicialmente diagnosticados como desprovidos de qualquer reacção visível terem revelado uma actividade cerebral compatível com a presença de algum nível de consciência, explica ainda o mesmo comunicado. E mais importante ainda: nove desses doentes recuperaram ulteriormente “um nível razoável de consciência”.

Na opinião de dois especialistas independentes, que assinam um comentário na mesma edição da revista, estes resultados tornam difícil sustentar que um diagnóstico puramente comportamental possa ser fiável sem uma confirmação através da PET. “No futuro” escrevem, “é provável que olhemos para trás e nos perguntemos, espantados, como é que conseguíamos passar sem ela.”

Sugerir correcção
Comentar