Empresa de genética pessoal patenteou método que permitiria fazer bebés “à medida”

Cientistas alertaram para as potenciais implicações éticas da patente. A 23andMe desistiu de explorar o método em situações reais.

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A comissão de reforma foi incumbida de estudar medidas fiscais que tenham em conta a natalidade Daniel Rocha

A 24 de Setembro, mais de cinco anos depois de ter submetido um pedido de patente, a conhecida empresa norte-americana 23andMe, que fornece a quem o desejar uma análise genética do seu ADN por uma centena de dólares, patenteou um método que permite a “selecção de dadores de gâmetas com base em cálculos genéticos”. Por outras palavras, permite maximizar as probabilidades de gerar bebés “à medida” que satisfaçam os desejos dos pais.

Esta decisão do Gabinete de Patentes dos EUA foi esta quinta-feira posta em causa por quatro especialistas de bioética num artigo de opinião publicado na Genetics in Medicine, do grupo que publica a revista Nature. Os autores do artigo consideram que as implicações éticas desta decisão não foram devidamente acauteladas pelos serviços encarregados da análise dos pedidos de patentes.

Essencialmente, trata-se de um programa de computador que a 23andMe desenvolveu e que, a ser utilizado num banco de esperma, por exemplo, permitiria aos casais que recorrem à inseminação artificial escolher o dador em função das características físicas que gostariam de ver reflectidas na sua descendência. Até certo ponto, isso já é feito nos bancos de gâmetas – os dadores são seleccionados de forma a terem certas características semelhantes aos dos futuros pais –, mas o método da 23andMe leva para um outro patamar a precisão da avaliação das probabilidades de a futura criança ser assim ou assado.

“É óbvio que seleccionar crianças na forma patenteada pela 23andMe é, do ponto de vista ético, imensamente controverso”, escrevem Sigrid Sterckx, do Instituto de Bioética da Universidade de Gent (Bélgica), e os seus colegas. [Ora], em momento algum, durante a análise do pedido de patente, o funcionário responsável levantou a questão de saber se as técnicas de geração de crianças customizadas podiam ser objecto de uma patente.” Para estes peritos, “um processo computadorizado de selecção de dadores de gâmetas para conseguir ter um bebé com um ‘fenótipo interessante’ (…), na expressão da 23andMe, parece ter implicações muito mais latas, uma vez que este processo também diz respeito à selecção de traços não relacionados com doenças”.

Bebés por catálogo

Há anos que a 23andMe oferece esta funcionalidade no seu site, em jeito de brincadeira, aos seus clientes (entre os quais se inclui a autora desta notícia), sob o nome de “calculador de traços herdados” (Inheritance Calculator). Qualquer pessoa cujo ADN tenha sido analisado pela empresa pode “cruzar” os seus genes com os de qualquer pessoa do sexo oposto com que tenha “partilhado” os seus resultados genéticos (o equivalente dos nossos amigos no Facebook). Surge então uma lista de seis traços – percepção do sabor amargo, intolerância à lactose, cera dos ouvidos seca ou húmida, cor dos olhos (castanho, verde ou azul), desempenho muscular (fundista ou velocista) e rubor facial devido ao álcool – e, ao lado, as probabilidades de os hipotéticos filhos herdarem ou não estes traços dos seus “pais”. Já agora, um casal cujos dois elementos tenham feito a análise ao ADN pode de facto ir lá ver o que os seus futuros filhos poderão herdar nestes aspectos.

No enunciado da patente agora concedida, a 23andMe vai muito mais longe. Há lá várias figuras elucidativas do que seria possível fazer, que começam todas por “Prefiro uma criança com…” e com as opções acima referidas e mais outras, desta vez relacionadas com doenças. Tais como: risco (alto ou baixo) de cancro colorrectal, de doenças cardíacas congénitas, esperança de vida mais alta, menor custo em cuidados de saúde ao longo da vida, menor duração cumulativa das hospitalizações. Mais abaixo, aparecem os códigos de uma série de dadores possíveis, com as probabilidades associadas a todos estes parâmetros que decorreriam da escolha do esperma de cada dador.

Hoje em dia, em Portugal, quando um casal recorre à doação de esperma, seleccionam-se os dadores potencias com base numa série de características genéricas: cor da pele, altura, grupo sanguíneo, altura, cor dos olhos, cor do cabelo. “Mas ir ao ponto de haver um catálogo é folclore e a prática médica deve abster-se disso para não alimentar falsas expectativas” ao nível do natural desejo dos pais de terem filhos perfeitos, disse ao PÚBLICO Alberto Barros, geneticista e médico da Faculdade de Medicina do Porto e especialista da procriação medicamente assistida.

“Escolher um bebé à medida parece-me chocante” acrescenta. “Como médico e como pessoa, perturba-me imaginar um filho com uma fotografia antes de nascer.”

Alberto Barros diz-se “totalmente de acordo” com os autores do texto, e considera que o futuro da genética vai levantar imensos problemas deste tipo. “Vamos ser cada vez mais confrontados com situações que, na maioria dos casos, não têm interesse médico.”

Mesmo em relação às doenças genéticas, “tem de haver muita cautela e critérios muito rigorosos de escolha do que vai ser estudado”, salienta o cientista. “Não pode ser o mercado a definir o que é uma doença genética grave e quais os genes que é útil testar para evitar a transmissão de doenças às gerações seguintes.”

Entretanto, na passada segunda-feira, a 23andMe emitiu um comunicado no seu site negando qualquer intenção de utilizar plenamente, no futuro, o método descrito na patente. “Nunca tivemos a intenção de explorar os conceitos discutidos na patente para além do nosso Calculador de Traços Familiares Herdados e não temos qualquer plano para o fazer”, lê-se no comunicado. Na quarta-feira, a revista New Scientist escrevia, por seu lado, que esta declaração surgiu na sequência dos seus pedidos de informação junto da empresa – cuja retractação poderá dever-se ao facto de o método ter sido considerado “perigosamente próximo” do eugenismo ou a suspeitas de que talvez não funcione tão bem como anunciado.

Inquirida na quinta-feira pelo PÚBLICO acerca da eventual utilização do método por terceiros, sob licença da 23andMe, uma porta-voz da empresa respondeu-nos que “a 23andMe não irá licenciar o método a terceiros no futuro”. Explicação: “Quando o pedido de patente foi submetido, houve quem pensasse que esta funcionalidade teria aplicações potenciais nas clínicas de fertilidade, numa altura em que o processo de selecção dos dadores se baseava tipicamente em fotografias, história familiar e alguns testes genéticos limitados. Muitas coisas mudaram nos últimos anos e a 23andMe não continuou nessa via nem tenciona fazê-lo no futuro.”

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