Portugal tem aquíferos salinos profundos onde talvez possa enterrar o seu CO2

Há uma década que se estudam as propriedades de reservatórios profundos em Portugal que talvez possam guardar CO2 capturado em contexto industrial, logo após a queima de combustíveis fósseis.

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Ilustração de um processo de captura e armazenamento de carbono Gabriela Pedro

Portugal tem formações geológicas profundas onde possa injectar e, de forma segura e permanente, armazenar volumes significativos de dióxido de carbono (CO2)? Um projecto de investigação recente, que foi financiado pela União Europeia (UE) e envolveu quatro parceiros nacionais — a Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), a Universidade de Évora, a Faculdade de Ciências da Universidade de Nova de Lisboa e ainda a cimenteira Cimpor —, diz que, sobretudo offshore (isto é, abaixo do chão do nosso mar), parecem existir condições para termos grandes reservatórios deste nocivo gás com efeito de estufa (GEE).

Temos mais espaço do que aquele que alguma vez seria necessário para armazenar o CO2 dos principais emissores” nacionais, diz ao PÚBLICO Júlio Carneiro, professor do Departamento de Geociências da Universidade de Évora.

O projecto, chamado Strategy CCUS, estudou oito regiões, de sete países (Croácia, Espanha, França, Grécia, Polónia, Portugal e Roménia), que teoricamente têm potencial para nelas se investir em soluções de captura, utilização e armazenamento de carbono (carbon capture, usage and storage, ou CCUS).

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Há várias formas de capturar CO2: a mais comum consiste em sequestrar este gás assim que os combustíveis fósseis são queimados em contexto de fábrica.

Tiago Bernardo Lopes

São regiões com suposto potencial porque, além de terem formações geológicas profundas que talvez possam ser bons e seguros reservatórios de CO2, também agrupam, em termos geográficos, várias instalações industriais com uma pegada carbónica mais ou menos relevante.

A zona em Portugal que parece ter o maior potencialpara ter reservatórios de CO2 é, de longe, a zona entre o norte da Figueira da Foz e o norte da Nazaré”, diz Júlio Carneiro, que esteve envolvido no Strategy CCUS até Julho de 2022, quando terminou o projecto. “Há mais informação geológica já recolhida e há também proximidade de pontos emissores — sobretudo cimenteiras”, cujas emissões são especialmente difíceis de abater, observa.

Neste momento, Júlio Carneiro e a Universidade de Évora estão a trabalhar no PilotSTRATEGY. Este projecto, que se iniciou em Maio de 2021 e deverá durar até Abril de 2026 — e que também é financiado pela UE —, pode ser visto como uma espécie de continuação do Strategy CCUS. Voltará a olhar para cinco dos sete países estudados previamente (Espanha, França, Grécia, Polónia e Portugal) e fará uma detalhada “caracterização geológica” dos aquíferos salinos profundos mais promissores. Estes estudos deverão permitir determinar, quiçá mais ou menos definitivamente, até que ponto eles podem mesmo vir a ser bons reservatórios offshore de CO2.

Será também montado um plano que, nas palavras de Júlio Carneiro, servirá de base para, no futuro (e havendo financiamento nesse sentido), se “implementar um projecto-piloto” de armazenamento de dióxido de carbono.

Os investigadores tentarão identificar as zonas em que faz mais sentido e é mais seguro fazer as perfurações necessárias para se injectar o CO2 na subsuperfície. Também elaborarão uma “estratégia de injecções” a longo prazo e farão uma avaliação acerca de qual deverá ser o “comportamento” do CO2 dentro dos aquíferos salinos, uma vez injectado.

Este não é um projecto para efectivamente guardar CO2 na subsuperfície. É um projecto para “fazer tudo aquilo que é preciso fazer para depois implementar um piloto”, frisa Júlio Carneiro. Estudar bem as propriedades geológicas dos possíveis reservatórios de CO2, avaliar as tecnologias de captura e injecção e os respectivos riscos, “caracterizar rigorosamente todos os aspectos técnicos e de licenciamento que são necessários para isto passar da teoria para a prática”... Resumidamente, preparar o terreno todo”.​

O projecto inclui uma componente de diálogo com decisores locais. “Continua a haver pouco conhecimento sobre esta tecnologia [de captura e armazenamento de carbono] em Portugal, apesar de o sector académico e a indústria andarem a trabalhar nisto há já alguns anos”, diz o investigador da Universidade de Évora. “Temos de nos envolver mais com os decisores locais.”

Estudos desde há pouco mais de dez anos

O doutorado em Hidrogeologia pela Universidade de Londres diz ter sido com o projecto KTEJO que, na sua óptica, se começou a falar um pouco de captura e armazenamento de carbono (carbon capture and storage, ou CCS) em Portugal. Este projecto, que teve a Universidade de Évora como líder e decorreu entre 2009 e 2011, pretendeu estudar a viabilidade​ de se criar um projecto de CCS para se reduzir as emissões da central termoeléctrica do Pego, entretanto encerrada no final de 2021.

Um ano após o arranque do KTEJO, começou o COMET, que se prolongou até 2012. Tendo envolvido “a maioria dos principais emissores em Portugal”, procurou definir como é que se poderia montar “​uma infra-estrutura integrada de transporte e armazenamento [de CO2] em Portugal, Espanha e Marrocos”, conforme descreve a DGEG no seu site.

Foi por ocasião destes projectos​ que investigadores como Júlio Carneiro analisaram pela primeira vez a capacidade que diferentes aquíferos salinos em Portugal podem ter para armazenar CO2. “Todo este processo de caracterização geológica é longo” e exigente, observa o professor da Universidade de Évora, que, uma década após o fim do COMET​, continua a estudar, de forma progressivamente​ mais minuciosa, os mais promissores dentre os possíveis reservatórios.

Os anos de trabalho permitiram já ​perceber que “a nossa capacidade de armazenamento geológico é muito superior offshore do que onshore [em profundidade, abaixo de terra firme]”. “O problema é que armazenar CO2 offshore tende a ficar duas a três vezes mais caro do que onshore”, afirma.

O custo elevado das tecnologias de CCS pode dificultar a real materialização de projectos de captura e armazenamento em Portugal, mas Júlio Carneiro diz que “os grandes emissores estão a olhar para esta tecnologia” — que, apesar do seu preço robusto, já começa a fazer algum sentido do ponto de vista económico, defende.

“O preço da tonelada de carbono vai continuar a subir e, financeiramente, armazenar ou reutilizar CO2 capturado​ vai começar a ser mais vantajoso do que emitir”, acredita.

A indústria cimenteira está, efectivamente, a olhar para a CCUS. Tanto a Secil como a Cimpor incluem estas tecnologias nas suas estratégias para a neutralidade carbónica até 2050. A indústria do cimento é uma cujas emissões de CO2 são especialmente difíceis de abater, pois o ingrediente principal do cimento, o clínquer, é obtido através de um processo químico que liberta CO2 para a atmosfera, independentemente de serem usados combustíveis fósseis como fonte de energia ou não.

Tecnologias que não são consensuais

O processo de CCS envolve a captura de CO2 em contexto industrial, antes que seja libertado para a atmosfera. A queima de combustíveis fósseis dentro de uma fábrica resulta na formação de nuvens de fumo, que escapam pelas chaminés. Estas são o chamado gás de combustão, que é composto por azoto, vapor de água, oxigénio, poluentes como monóxido de carbono e, claro, CO2.

Num projecto de CCS, o gás de combustão é “tratado” dentro de uma “fábrica de captura” de CO2. Este GEE é, na sequência de reacções químicas, separado dos restantes constituintes, o que depois permite o seu armazenamento num local teoricamente seguro — como uma formação geológica profunda que se encontre “cercada” por “rochas de cobertura”, isto é, rochas com pouca porosidade e impermeáveis, que consigam aprisionar o CO2 permanentemente.

PÚBLICO - Ilustração simplificada de um processo de CCS, desde o momento da captura de CO2 em contexto industrial ao do seu armazenamento numa formação geológica profunda
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Ilustração simplificada de um processo de CCS, desde o momento da captura de CO2 em contexto industrial ao do seu armazenamento numa formação geológica profunda Gabriela Pedro

As soluções de CCS não são consensuais. Há quem defenda​ que só com recurso a elas é que algumas indústrias poluentes (cimento, aço, hidrogénio azul e transformação de resíduos em energia, por exemplo) poderão reduzir a sua pegada carbónica e a Europa poderá atingir​ a neutralidade carbónica em 2050. Mas também há quem duvide delas.

Por um lado, as tecnologias de captura continuam a ser extremamente custosas. Por outro, o processo de captura e armazenamento tem um grande consumo energético. “Ainda não sabemos bem qual é o balanço entre o CO2 armazenado e o carbono emitido ao longo de todo este processo”, diz ao PÚBLICO Acácio Pires, da associação ambientalista Zero.

A CCS não é consensual também porque só evita uma parcela das emissões. Imaginemos que uma petrolífera manda construir uma “fábrica de captura” ao lado das suas instalações industriais. A “fábrica”​ consegue separar o CO2 dos restantes componentes do gás de combustão, mas a gasolina que é produzida não deixa de gerar CO2 quando depois é queimada pelos motores de combustão dos mais diversos carros.

​Um estudo recente do Instituto para a Economia da Energia e a Análise Financeira (IEEFA, na sigla inglesa), um think tank independente, lembra que é no momento da utilização quotidiana dos bens de consumo, e não no da sua produção, que o sector do petróleo emite a fatia claramente mais significativa das suas emissões. Tal fatia não está a ser tida em conta pelos defensores de projectos de CCS quando dizem que estas tecnologias podem transformar as indústrias mais poluentes em indústrias “neutras em carbono”, argumenta o estudo.

​​“A captura de carbono tem sido usada como uma justificação para novos projectos de petróleo e gás”, defende o IEEFA.​

No final de Novembro, a​​ Comissão Europeia (CE) apresentou uma proposta de um novo quadro legislativo para “certificar de forma fiável as remoções de carbono de elevada qualidade”. A Zero disse que a proposta era “bem-vinda”, mas também afirmou temer que ela venha a desviar o foco daquela que é a “acção principal”: a redução drástica de emissões. “Uma abordagem assente na remoção de carbono da atmosfera através de tecnologias ainda dúbias não responde à necessidade imediata de reduzir emissões de GEE”, comentou a organização não-governamental, num comunicado de imprensa.​

Num artigo de opinião escrito para o PÚBLICO, Belén Balanyá, que integra o Observatório da Europa Corporativa, monitorizando a actividade de lobbying empresarial em Bruxelas, teceu críticas mais duras. “Os planos de remoção de carbono da CE servem os objectivos da indústria dos combustíveis fósseis”, afirmou, dizendo ser “altamente problemático” que a União Europeia​ tenha colocado tal indústria “no centro das preocupações políticas”.​

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