Cresceram dentro de histórias, a devorar dezenas de livros todos os anos. Agora, já adultas, a paixão pela leitura mantém-se, mas "mudou de língua". Ana e Carlota são parte integrante de um fenómeno que está a crescer em Portugal: jovens que lêem só em inglês. É "fácil" explicar porquê: dominam totalmente a língua inglesa (por vezes quase ao nível de um nativo), não querem esperar pelas edições portuguesas, não sabem se determinada obra alguma vez será traduzida e preferem ler na língua original. Na base desta pirâmide de razões está o preço. Para quem lê mais de 50 livros por ano, pagar cerca de 20 euros por cada um é "simplesmente incomportável".
A Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) estima que o livro em inglês valha, nesta altura, entre 5% e 8% do valor total do mercado português. Em linha com a Europa, esta tendência verifica-se sobretudo na categoria de ficção. Além da diminuição das vendas das edições em português, este fenómeno pode pôr em causa “a viabilidade de muitos projectos editoriais” e levar a uma "desvalorização da língua portuguesa".
Os livros em inglês entraram na vida de Carlota Santos já na universidade, quando estava a estudar Línguas, Literaturas e Culturas em Aveiro. "Foi um processo que acabou por ter só benefícios. Estava a fazer uma especialização em Estudos Norte-americanos e muita gente do meu curso só lia em inglês. Decidi experimentar porque achei que ia ser útil para o mestrado que queria seguir, que era Estudos Editoriais". Estreou-se com A Cor Púrpura, um clássico da literatura norte-americana, e acabou por dar de caras com "milhares de livros" de um género que, na altura, "ainda não estava muito desenvolvido em Portugal", o novo adulto (new adult). Este é um género de ficção em que a trama gira à volta de personagens entre os 18 e 25 anos, narrando histórias quase sempre passadas nos cenários das faculdades (ou nos anos seguintes), em que os protagonistas estão a viver longe de casa, a trabalhar ou a apaixonarem-se pela primeira vez.
Carlota acabou por se enamorar pelo género e praticamente não voltou a ler em português. Para tal também contribui o facto de ter uma conta no TikTok dedicada às suas leituras e de querer acompanhar o que a comunidade de booktokers — termo que resulta da junção de “book” (livro) e “tokers” (referente às pessoas que fazem vídeos para aquela rede social) — está a ler. "Estou atenta às publicações portuguesas e sinto que os livros demoram muito tempo a chegar cá. Agora estou a ler uma série que já vai para o terceiro livro e o primeiro só vai ser publicado agora em Junho em Portugal", diz.
Uma série incompleta também fez com que Ana Ferreira migrasse para a língua inglesa e nunca mais regressasse ao português. Lembra-se de ler A Culpa é das Estrelas, de John Green, e a saga Harry Potter, que a fez apaixonar-se pelo género de fantasia, ainda em português. Entretanto, começou a ler a trilogia Grisha, de Leigh Bardugo, quando reparou que só o primeiro volume é que estava traduzido (o segundo só seria publicado dez anos depois).
"O meu inglês não era assim tão desenvolvido, mas decidi que ia tentar e isso acabou por melhorar imenso a minha fluência e fez com que me apaixonasse de novo pela leitura ", recorda a jovem de 24 anos. "Agora o mercado literário está um bocadinho diferente, mas há uns anos sentia que, principalmente os livros de fantasia, passava uma eternidade entre os lançamentos de cada livro e eu ficava ansiosa, queria ler tudo de seguida para saber o que acontecia. Depois também dei conta da diferença de preços de um livro em português para um livro em inglês e isso foi outra coisa que me fez continuar a ler em inglês".
"Concorrência desleal"
A preocupação com o crescimento desta tendência, principalmente entre os mais jovens, é transversal a todas as editoras ouvidas pelo P3. O aparecimento dos e-readers, como o Kobo ou o Kindle (que permitem adquirir e começar a ler determinado livro em menos de cinco minutos) e o acesso facilitado a plataformas que potenciam a compra imediata após a descoberta do livro nas redes sociais só vieram agravar o problema.
"Se é verdade que a geração mais jovem, muito dinamizada pelo Instagram e pelo TikTok, tem feito aumentar as vendas de livros, é também verdade que muitos destes leitores lêem em inglês, já que acompanham nas páginas internacionais os fenómenos literários, e não esperam pela tradução. Em séries com mais do que um título, mesmo que leiam o primeiro volume em português, acabam por ler os restantes em inglês", diz Luís Corte Real, da Saída de Emergência.
O prejuízo é ainda maior nas séries de livros mais longas, que "começam com bons resultados nos primeiros números, mas depois perdem os leitores para as edições em inglês"."Uma edição nacional implica custos de aquisição de direitos, capa, tradução, revisão, marketing, o que resulta num preço de venda ao público mais elevado, já que as tiragens médias são muito pequenas. As tiragens em inglês são gigantes, muitas vezes impressas na China, e são uma concorrência absolutamente desleal. Não há outra forma de ver a coisa: cada livro vendido em inglês é menos um livro vendido em português."
Se este fenómeno for uma "tendência geracional", com "potencial para se acentuar nas gerações seguintes", Teresa Matos, directora editorial da Clube do Autor, refere que poderemos mesmo estar perante "um declínio imparável da importância da língua portuguesa na literatura". "Esta tendência revela a aproximação dos leitores nacionais aos mercados estrangeiros, atentos aos lançamentos, graças aos efeitos de disseminação das redes sociais e a fluência cada vez maior dos jovens na língua inglesa. Mas preocupa-nos a vários níveis: editorialmente, no sentido em que reduz as vendas potenciais da edição portuguesa, e, no longo prazo, tememos os efeitos no domínio da língua portuguesa e ao nível de lançamento de novos autores nacionais e da qualidade da escrita em português".
Dado o tamanho reduzido do mercado nacional, é preciso também que as editoras consigam recuperar o investimento feito nas obras traduzidas, assegurando um mínimo de vendas, o que nem sempre acontece. "Se os leitores optam pela versão inglesa, e promovem essa mesma edição, vão afastando outros potenciais leitores e obras menos populares deixam de ser viáveis. Obviamente que no caso de livros mais populares esse efeito se dilui, mas, considerando a desejável diversidade no mercado, percebemos que afecta obras que poderiam estar traduzidas e editadas em Portugal, mas cujo risco é elevado", refere ainda Teresa Matos.
Ana Gaspar Pinto, da Infinito Particular, refere mesmo que, em inúmeras ocasiões, a editora é abordada por jovens para perguntar se determinado livro existe em inglês "enquanto apontam para a edição portuguesa", o que obrigou o grupo a fazer uma "pergunta adicional" sempre que decide editar um livro: "A nossa edição consegue competir com a edição inglesa?". "Os editores portugueses, infelizmente, nunca conseguirão competir por uma questão de escala, mas também de regulamentação e, muitas vezes, as importações desses livros escapam à aplicação da lei do preço fixo. Todos sabemos que há poucos leitores em Portugal, mas com o aumento da leitura dos livros em inglês, acabamos por ter ainda menos leitores a ler em português...".
Mais lançamentos mundiais
Reconhecendo o problema mas já a pensar em soluções, as editoras têm tentado diminuir o intervalo de tempo entre o lançamento internacional e a respectiva edição portuguesa, uma vez que muitos leitores querem ler o livro assim que sai, e até apostar nos regimes de lançamento mundial.
"Há igualmente uma enorme preocupação com a qualidade final da edição, apostando-se em acabamentos distintos e edições especiais, já que muitos dos livros ingleses são adquiridos em versão digital ou na versão impressa mais barata e menos cuidada", diz Teresa Matos, da Clube do Autor. Na Saída de Emergência, por exemplo, adoptaram-se capas e títulos originais, com subtítulos em português, para que exista uma "identificação imediata com o original" e aumentou-se o catálogo de autores portugueses.
Pedro Sobral, que é simultaneamente director-geral de edições no grupo LeYa e presidente da APEL, refere que as editoras também têm feitos esforços para tentar manter os preços das edições portuguesas o mais competitivos possível face aos livros originais. "Os editores têm controlado a subida dos preços de venda ao público face à pressão dos custos de produção. Em média, e durante 2022 e 2023, os custos de produção aumentaram entre 30% e 45% e preço de venda a público apenas 3%." Mas, mais do que medidas "avulsas", o responsável diz que é importante "apoiar, promover e aumentar a exposição à língua portuguesa", um trabalho que deve ser feito nas escolas, em casa e "fazer parte da estratégia de crescimento do país".
Tânia Raposo, directora editorial adjunta da Presença, acredita que a reflexão deve ser conjunta, "congregando editores e livreiros". Já Luís Corte Real, da Saída de Emergência, propõe que o cheque-livro (uma medida do anterior Governo) seja limitado a livros de autores nacionais, que também deveriam ter uma presença mais forte no Plano Nacional de Leitura. "Dentro da cultura, o livro é sempre o parente pobre. Acho que uma das medidas deveria ser fomentar, junto dos estudantes, o incentivo à leitura desta nova geração de autores nacionais. Mais do que se promover a literatura, promovia-se a literatura nacional".
No caso da edição de obras estrangeiras, Teresa Matos, da Clube do Autor, sugere aumentar os apoios à tradução, que "representam uma parte significativa dos custos totais", o que poderia permitir ajustes no preço final dos livros. "É importante continuar a apoiar projectos nacionais, apostando na sua diversidade, por um lado, e universalidade. Podemos ainda equacionar de que forma a promoção dos livreiros dos lançamentos em inglês impacta as edições nacionais. Neste momento, alguns pré-lançamentos internacionais já são comunicados lado a lado com os nacionais, com imediata comparação de datas e preços, o que prejudica a edição nacional".
Já o grupo Porto Editora refere que "combater esta tendência", não é a "estratégia mais adequada" e considera que os esforços devem estar do lado da "promoção da nossa língua e da leitura em português", em especial junto do público mais jovem. "O esforço de promoção da língua deve surgir, sobretudo, do lado da procura e menos da oferta. Se o apoio à promoção da leitura em língua portuguesa for adequado e robusto, acreditamos que os nossos autores continuarão a ter leitores, em particular, novos leitores. Caso isto não aconteça, poderá vir a ser necessário apoiar autores, editores e livreiros".
Para o grupo, é necessário continuar a "editar nomes de destaque da literatura e poesia portuguesa", bem como "escritores de títulos infanto-juvenis". "Sublinhamos ainda a importância do trabalho desempenhado pelo Plano Nacional de Leitura 2027, que deve ser dotado de meios que lhe permitam cumprir o seu papel. O PNL é um instrumento de extrema importância e que agora se torna essencial para que a nossa língua não seja abafada por outras".
E traduções mais rápidas
Para Ana e Carlota (as leitoras), é notório o esforço que tem sido feito em Portugal para que os livros sejam lançados com maior rapidez e para tentar acompanhar as tendências do que é publicado lá fora. "Nos últimos tempos, as editoras deram conta do poder do booktok e acho que há uma tentativa de trazer os livros cada vez mais rápido para combater esta questão dos livros em inglês, mas obviamente é impossível traduzir as dezenas de livros que são publicados todos os dias", refere Carlota.
No entanto, nenhuma das jovens pensa voltar a ler em português. Ana, que tem uma página no Instagram em que partilha o que está a ler, acabou por encontrar uma comunidade de "imensas pessoas que também lêem exclusivamente em inglês" e refere que já ganhou o hábito de ler na língua original. "No ano passado li um livro traduzido para português e, mesmo sendo a minha língua materna, senti que demorei muito mais tempo a acabá-lo porque já estou habituada a ler em inglês". Já Carlota, que está a concluir dois mestrados em Estudos Chineses e Estudos Editorais, sabe que o seu futuro passará pela segunda área. "No futuro, gostava de trabalhar numa editora. Não só na parte do marketing, e daí ter criado a conta no TikTok, mas também para descobrir livros em inglês que acho que valeria a pena trazer para Portugal".
Notícia actualizada às 10h20 no dia 14 de Maio: foram adicionadas respostas da Porto Editora