Sérgio e Íris estão a criar uma nova geração de leitores no TikTok — um livro (e vídeo) de cada vez
São booktokers e fazem parte de uma nova geração de divulgadores literários que está a dar fôlego à venda de livros em Portugal. Editoras apostam nestes jovens para chegar a faixas etárias mais novas.
Sérgio passou de influenciado a influenciador em menos de um ano. Não gostava de ler e começou a devorar mais de 30 livros em 365 dias. Não tinha com quem comentar o que lia, mas agora tem 40 mil pessoas que o vêem e ouvem a falar de livros todas as semanas. Já as estantes de Íris não a deixam mentir. É uma leitora ávida desde pequena, muito instigada pela mãe, mas há dois anos encontrou uma nova missão: incentivar o maior número de pessoas possível a criar o gosto pela leitura.
Sérgio Alves e Íris Bicho são booktokers, termo que resulta da junção de “book” (livro) e “tokers” (referente às pessoas que criam conteúdos para a rede social TikTok). Fazem parte da nova geração de divulgadores literários que está a dar um fôlego renovado à venda de livros em Portugal. O fenómeno não está a passar ao lado às editoras portuguesas, que têm vindo a apostar nestes jovens para chegar às faixas etárias mais novas.
“Eu não lia praticamente nada. Lembro-me de ler a colecção Uma Aventura, mas não passava disso. Até que no Natal de 2021 me ofereceram o Outono, de Ali Smith. Num dia aleatório, no TikTok, vi alguém a falar desse livro.” O jovem de 23 anos entrou então numa espiral de consumo deste tipo de conteúdo. E a lista de livros que gostava de ler começou a crescer. Ainda não parou.
“Não tinha muitas pessoas à minha volta que gostassem de ler; então, sentia muita necessidade de expressar a minha opinião sobre determinado livro em algum sítio”, conta Sérgio, que vive em Lisboa. Foi no TikTok, onde até já publicava alguns vídeos nada relacionados com a literatura, que encontrou a plataforma ideal para trocar opiniões sobre o que já leu e o que ainda quer ler.
Íris, pelo contrário, já é uma veterana no que toca a falar de livros na Internet. Foi uma das primeiras criadoras de conteúdos literários na comunidade portuguesa do TikTok. Fez o primeiro vídeo há mais de dois anos, quando a sua família (e o resto do país) estava “fechada em casa”, na Charneca da Caparica, Almada, por causa da pandemia e tinha pouco com que se entreter. A confiança em frente à câmara foi crescendo e o mesmo aconteceu com as estantes e o número de seguidores, que se aproxima dos oito mil. A jovem de 19 anos, que lê mais de 100 livros por ano, só não perdeu a conta aos livros que tem porque desafiou a família a tentar adivinhar, em vídeo, o número. Em Janeiro havia 470 livros (número que certamente já cresceu entretanto) espalhados por três estantes.
Os booktokers portugueses lêem um pouco de tudo — romances, fantasias, distopias, thrillers, mistérios e alguma não-ficção. Não deixam de lado os clássicos e os livros mais populares entre as faixas etárias mais jovens, mas também não se forçam a ler algo que achem de que não vão gostar. Íris e Sérgio, em particular, têm (mais) uma coisa em comum: ambos preferem gravar os vídeos em que dão a sua opinião sobre o que acabaram de ler. “Adoro colocar a gravar e saber que vou estar a falar de um livro de que gostei com alguém que quer ouvir. A minha família já não aguenta ouvir-me a falar pela milésima vez sobre este livro ou aquele”, confessa Íris.
O tipo de vídeos que esta comunidade produz é tão variado como o gosto literário. Em alguns mostram os livros “recém-chegados” às estantes, noutros relatam aos seguidores que obras vão ler no mês seguinte (ou quais leram no mês passado). Há ainda os vídeos sobre os “livros favoritos de todos os tempos (ou de determinado género literário) ou sobre a lista de livros que “partem o coração e fazem chorar”. Os vídeos que mostram a estética de um determinado livro e os unboxings (abertura de encomendas) são particularmente populares nos canais de Sérgio e Íris.
Conjugar trabalho ou faculdade com as leituras
Com dois anos de experiência, Íris aprendeu a fazer malabarismo com o tempo: uma parte é dedicada à faculdade (está no segundo ano da licenciatura de Gestão de Recursos Humanos) e à vida social. O restante às leituras e ao TikTok. Passa várias horas em transportes, que aproveita para ler.
“Reservo duas manhãs por semana para tentar gravar mais do que um vídeo. Às vezes, até chego a mudar de roupa para parecer que foi gravado em dias diferentes para conseguir ter vários conteúdos preparados. Tento publicar quatro vídeos por semana. Nas semanas em que estou de férias, tento publicar todos os dias”, diz a jovem de 19 anos.
Já Sérgio concilia o trabalho a tempo inteiro como cozinheiro num restaurante em Lisboa com a produção de conteúdos para o TikTok, mas também para o Instagram. O pano de fundo é quase sempre a estante, colocada na sala de casa, em Lisboa.
“Nos dias de trabalho tento responder aos emails, planear os vídeos e fotografias que quero fazer. Depois, na minha folga, tento produzir todo o conteúdo para uma semana ou para todo o mês.” O número de vídeos publicados por semana varia consoante a vontade, a criatividade e as obras que tenha lido nos últimos tempos. “Tento ler logo de manhã, antes do trabalho. Depois, quando volto a casa, e também à noite. Ler um livro não é tão rápido como ver um filme. Era impossível dedicar apenas duas horas a um livro.”
A capacidade que os booktokers, jovens que estão a comunicar com jovens da mesma ou de faixas etárias próximas, têm de chegar a milhares de pessoas é tão grande que o passatempo da leitura já se tornou um trabalho em part-time para muitos. Meses depois de começar a fazer vídeos, Íris foi contactada por uma editora portuguesa interessada em firmar uma parceria. O mesmo aconteceu com Sérgio. “Era do conhecimento geral de que algumas editoras nunca faziam parcerias com tiktokers. Então, quando surgiu a primeira, com a Planeta, foi incrível. Nunca pensei que ia receber livros, quanto mais fazer uma parceria. Parecia que as editoras não estavam a querer acompanhar o potencial do TikTok”, explica Íris.
Só em 2021 é que a indústria editorial se começou a aperceber que os livros que os leitores estavam a comentar no TikTok apareciam depois nas listas das obras mais vendidas, como admite o gabinete de comunicação da LeYa ao Ípsilon.
“Os booktokers são uma das vertentes prioritárias do nosso trabalho de promoção dos livros, uma vez que são seguidos por muitos jovens e estão a promover a leitura como algo ‘fixe’, afectando de forma positiva os leitores portugueses, sobretudo os jovens adultos. Por esse motivo, é natural que continuemos a apostar na ligação a estes canais e a acompanhar esta tendência, que nos parece relevante para a criação de novos leitores.” "À semelhança do que acontece noutros países europeus e nos EUA, verifica-se em Portugal um incremento de vendas de alguns títulos, motivado por partilhas nas redes sociais", confirma Joana Branco, porta-voz do grupo Porto Editora.
Inês Mourão, do Grupo Presença, admite mesmo que há uma nova geração de leitores que despertou para o mundo dos livros através desta plataforma, daí que as editoras tenham procurado estabelecer colaborações com os criadores de conteúdo. Actualmente, esta editora tem parcerias com mais de 100 jovens booktokers, a Clube do Autor com mais de 30. Já a Saída de Emergência fala em mais de 500 colaborações. “Muitos começaram no Instagram, onde ainda se mantêm, e criaram conta no TikTok. Geralmente, acumulam estas duas redes”, diz Cláudia Araújo Teixeira, coordenadora de comunicação da Saída de Emergência.
Berta Silva Lopes, da comunicação da Alma dos Livros, refere que, se nos primeiros tempos “o booktok começou no segmento de livros para adolescentes”, agora as publicações são mais diversificadas, incluindo já outros géneros e temáticas. A influência destes jovens começa a ir além da leitura. O Grupo Infinito Particular, por exemplo, reconhece que tem apostado mais em obras que “se foquem em problemas com que as gerações mais jovens se preocupam e questões que apoiam: de etnia, representatividade, diversidade, etc.”.
Marta Serra, directora de comunicação da Penguin Random House, diz que os criadores de conteúdos, para além de partilharem novidades, são também muitas vezes responsáveis por reavivar livros mais antigos, criando uma “nova dinâmica no mercado editorial”. “A comunidade portuguesa tem vindo a crescer a olhos vistos, tanto a nível de criadores de conteúdo, como de seguidores, e são cada vez mais os jovens que se deslocam às livrarias em busca de livros que foram recomendados pelos booktokers. O TikTok pode ser uma forma mais autêntica, criativa e eficaz de chegar a esta audiência, o que antes não era tão directo.”
Venda de livros cresceu mais de 12% em 2022
O que se torna viral no TikTok não tem fronteiras e os fenómenos lá fora, em particular nos EUA e no Reino Unido, também têm impacto no mercado nacional. Em meados de 2021, por exemplo, o livro Quando Éramos Mentirosos, de E. Lockhart, era um dos mais populares entre os criadores de conteúdo norte-americanos. Influenciados, os leitores portugueses correram para as livrarias. O aumento do interesse e das vendas foi tal que a LeYa, que já tinha editado este livro em 2014, o reimprimiu para responder à procura.
“A influência das redes sociais, nomeadamente do TikTok, é cada vez mais notória. Obviamente que Portugal não é imune a estes fenómenos. Se repararmos nos livros que actualmente ocupam as preferências dos leitores, principalmente no que se refere àquilo que se considera [o género] young adult, vemos que surgiram como fenómenos das redes do TikTok – inclusive, os frequentadores destas redes consomem imensa informação e, muitas vezes, são eles que reclamam a publicação de determinados autores”, diz Cláudia Araújo Teixeira.
Nos Estados Unidos, onde o TikTok já se tornou numa autêntica máquina de vender livros, venderam-se 825 milhões de obras impressas em 2021, números que surpreenderam a NPD Bookscan, empresa que faz estudos de mercado na área editorial. Desde 2004, quando se iniciaram estas análises, 2021 foi o ano-recorde. As redes sociais, e em particular os booktokers, foram “definitivamente um factor importante” no aumento das vendas. A pandemia também ajudou a que as pessoas lessem mais.
Em Portugal não foi diferente. Em 2022, a venda de livros cresceu mais de 12,8% em relação a 2021, revelou a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), que recorre a dados disponibilizados pela consultora GfK. O segundo género campeão de vendas foi o infanto-juvenil, com um peso de quase 34% no total das vendas.
Segundo a APEL, 2021 foi o início de uma tendência em relação aos géneros escolhidos. Uma “proporção não negligenciável” de aumento das vendas globais no mercado deveu-se ao boom da banda desenhada, principalmente de mangas e manhwas (muito populares no TikTok), que se mostra “imparável” e teve em Portugal um dos maiores picos de vendas.
Em dois terços dos países analisados pela consultora num estudo — Alemanha, Bélgica (Flandres, Valónia), Brasil, Espanha, França, Holanda, Itália, Portugal e Suíça — os livros infanto-juvenis registaram aumentos ainda maiores do que o mercado livreiro no seu conjunto. Portugal foi um desses casos, com um aumento de receitas de mais de 21% nesse segmento.
“Temos impacto nas vendas dos livros”
Íris já fez vários trabalhos remuneradas para editoras portuguesas, mas a maior parte das parcerias passa pelo envio de um determinado livro (ou livros). Em troca, a booktoker inclui estas obras num ou mais dos seus vídeos. “Dão-me sempre a abertura para dizer o que acho e fazer o tipo de conteúdo de que gosto. Não somos criadores de conteúdo só para as coisas boas, também podemos e devemos falar sobre coisas de que não gostamos num determinado livro.”
Já Sérgio mantém uma parceria remunerada com a Penguin e tem de produzir quatro vídeos por mês para a conta da editora no TikTok, além de receber livros de várias outras. “Acho que o booktok em Portugal ainda é um caminho que está a ser construído; por isso, é normal que as editoras só agora se comecem a aperceber que temos impacto nas vendas dos livros”, refere.
E, apesar de a comunidade de cada um continuar a crescer e de notarem que há cada vez mais pessoas interessadas em ouvir falar sobre livros, também sentem que ainda há alguma “desvalorização” da literatura que as faixas etárias mais jovens consomem e do tipo de vídeos produzidos nesta rede social.
“Por ler um romance não sou menos do que quem lê um clássico. Acho que quem está de fora julga muito o tipo de conteúdo por achar que é para um público muito jovem, mas hoje quase toda a gente tem TikTok, há um público muito diverso”, comenta Íris.
Sérgio, que começou a ler por causa desta rede social e devorou muitos dos livros recomendados por outros criadores de conteúdos, acredita que é preciso ajudar os jovens a encontrar o género que os vai fazer apaixonarem-se pela leitura. “As pessoas devem ser livres de ler o que gostam de ler. Se me viessem pedir uma recomendação para alguém que nunca leu nada, eu não dizia um clássico.”
O mais importante, dizem ambos, é fazer com que pelo menos uma pessoa ganhe o “bichinho da leitura”, sejam seguidores, familiares ou amigos. E isso os jovens já conseguiram, garante Íris. “É muito gratificante ter pessoas a dizer que compraram um livro por recomendação nossa.”