A insustentabilidade da mentira permanente

Muitos milhares de professores já não verão a totalidade dos anos congelados restituídos, ou por já estarem no topo da carreira, ou por, entretanto, se terem aposentado.

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O popular provérbio “A verdade é como o azeite: vem sempre ao de cima” procura ilustrar o valor eterno da seriedade e da honestidade, em contraste com um dos mais preocupantes défices dos nossos tempos: o da falta de valores morais. Idealmente, num mundo em que uma lógica sacrificial da vida não imperasse devido às (pretensas) inevitabilidades impostas pelos pregadores do “deus” mercado, a verdade deveria guiar a conduta de todos nós. A realidade, porém, vê-se frequentemente desviada desse ideal, envolvida em véus de manipulação e interesses mais ou menos ocultos.

Para ilustrar a escolha do título deste artigo e aprofundar estas primeiras linhas, recuemos até ao ano de 2019, quando Mário Centeno, então ministro das Finanças, declarou que “o descongelamento das carreiras dos professores, com a recuperação de nove anos, quatro meses e dois dias, representaria “o maior aumento da despesa permanente decidido por aquele Governo e seria “incompatível com a regra da despesa”. Nesse mesmo ano, a análise de um relatório apresentado pela Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) lançou uma evidente crítica sobre as justificações apresentadas para a não devolução integral do tempo de serviço congelado dos professores. Debrucemo-nos sobre estes três seguintes pontos:

  • A despesa permanente

A afirmação de que a contagem integral do tempo de serviço resultaria numa despesa “permanente” falha ao ignorar o óbvio: que os professores envelhecem e se aposentam. Essa “permanência” sempre foi, portanto, temporária e decrescente.

  • O risco orçamental

Contrariando a narrativa alarmista do Governo de então, a UTAO apurou que a contabilização integral do tempo de serviço congelado (para todas as carreiras, registe-se) não colocaria em risco as metas orçamentais da União Europeia. Este ponto é crucial, pois desmantela a ideia de que a recuperação completa seria financeiramente insustentável.

  • A apresentação dos custos em valores ilíquidos

O Governo misturou despesas com receitas, apresentando uma imagem distorcida dos impactos financeiros. A UTAO criticou essa abordagem, pela sua falta de clareza e precisão, apontando a necessidade de uma representação transparente dos dados.

Uma “prova dos nove” facilmente comprova esta narrativa da UTAO e confirma a mistificação criada:

  • A despesa para a reposição integral do tempo de serviço congelado dos professores, avançada pelo Governo de então, seria de 635 milhões de euros.
  • Foi assumido, pelo próprio Governo, em 2019, que a reposição de 1/3 desse tempo ficaria em 196 milhões e, em 2023, que a despesa da reposição dos 2/3 em falta ficaria em 331 milhões.
  • Ou seja, a despesa inicialmente apresentada de 635 milhões vai, neste momento, em 527 milhões (196 + 331), sempre expostos em valores ilíquidos e sem qualquer projeção da receita obtida com o aumento dos rendimentos. O que apenas nos pode levar a questionar quaisquer números até aqui apresentados, enquanto a UTAO não apresentar o estudo solicitado para o efeito.

Sejamos claros: tanto o Governo de então como os seguintes sempre souberam que foi apresentado um valor extrapolado. Todos tinham a noção de que, logo a partir de 2019, milhares de professores iriam, todos os anos, para a reforma, e que uma devolução faseada provocaria uma despesa muitíssimo inferior a uma feita numa única vez. Ora, ter-se avançado que a despesa dos 2/3 em falta ronda 331 milhões é, exatamente pelo mesmo motivo, outra falácia: sendo a recuperação total feita de forma faseada, conforme prometido e assumido pelo atual Governo (página 109, do Programa do Governo), muitos milhares de professores já não verão a totalidade dos anos congelados restituídos, ou por já estarem hoje no topo da carreira, ou por, entretanto, se aposentarem, o que faz com que o valor em causa se reduza todos os meses – evidência, diga-se em abono da verdade, já assumida pelo novo ministro da Educação em recentes declarações.

Estivemos, portanto, ao longo de vários anos, enfrentando uma crise profunda. Não a financeira, mas uma crise de valores onde a verdade é frequentemente sacrificada no altar das conveniências políticas. E aqueles que insistem, enquanto opinadores nos media, incompreensivelmente e passados tantos anos, em perpetuar essas e outras falácias, além de merecerem as respostas devidas, devem ter a noção de que estão a cometer graves injustiças, não apenas contra os professores, mas contra toda a sociedade, que merece e depende de decisões políticas fundamentadas na realidade e em opiniões isentas, e não em interesses obscuros ou desconhecidos. Apenas por meio de um debate aberto e transparente, poderemos cultivar um ambiente onde a justiça não apenas prevaleça, mas oriente a formulação de melhores e adequadas políticas públicas, atraindo os mais bem preparados para o exercício de tão dignas funções.

Não há maior crise do que a da falta de valores. Nenhum défice é mais grave do que o moral. E não há pior insustentabilidade do que a da ausência de integridade. Mais do que nunca, a verdade deve ser a luz que guia a nossa sociedade, desmontando mentiras e assegurando que a democracia seja sustentada não apenas por palavras, mas por ações concretas e princípios inabaláveis.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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