Quem tem medo do passado?

As estruturas de poder herdadas e construídas pelo colonialismo continuam a ditar o racismo, a exclusão social, as hierarquias do conhecimento.

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As reparações pelos crimes do colonialismo português surgiram inesperadamente na ordem do dia, pela mão de um ator ainda mais inesperado. Marcelo Rebelo de Sousa escolheu a véspera do cinquentenário do 25 de Abril para afirmar que Portugal deve “pagar os custos” da escravatura e dos crimes coloniais. Passados três dias, reforçou a mensagem ao dizer que o país deveria liderar o processo de reparação em diálogo com os países que foram colonizados. Apontou, neste sentido, vários caminhos possíveis, desde compensações financeiras ao levantamento do património pilhado destes territórios.

Na sequência destas declarações, a direita parlamentar não perdeu tempo e utilizou o púlpito da Assembleia da República, nas comemorações do 25 de Abril, para proclamar uma guerra cultural contra quaisquer discussões sobre a herança colonial portuguesa.

“A História não é dívida” nem “obriga à penitência”, afirmou Rui Rocha, da Iniciativa Liberal. “A História é a História”, disse Paulo Núncio, do CDS-PP. O Chega acusou o Presidente da República de “traição” e, entre gritos exaltados, proclamou que Portugal “levou mundos ao mundo inteiro.” O próprio Governo, em declarações oficiais, afirmou que o assunto é “tóxico”. Ao coro de vozes da direita parlamentar juntaram-se inúmeros comentadores e cronistas. Todos eles repetiram dois argumentos centrais. Por um lado, a ideia de que a História é um dogma: fixa, imutável e indiscutível. Por outro lado, o princípio individualista de que “se não fui eu a fazer, não me diz respeito”. Repetidos até à exaustão nas televisões e folhas de jornais, estes dois argumentos apresentam problemas fundamentais.

Comecemos pelo primeiro argumento: a ideia de que as narrativas históricas não podem ser repensadas. As ideias veiculadas por figuras como André Ventura – que sublinhou que os portugueses terão contribuído para o “desenvolvimento” dos territórios africanos – ou por Paulo Núncio – que afirmou acriticamente na SIC Notícias que “o império português construiu cidades, portos e estradas em África” – não representam nenhuma forma de rigor histórico. Pelo contrário, estão apenas a reutilizar as velhas narrativas lusotropicais do mito do “bom colonizador”, que ignoram e silenciam as histórias da escravatura, do trabalho forçado e do racismo – e que continuam plasmadas nos nossos livros escolares, como explica Cristina Roldão. As narrativas que Ventura, Núncio e tantos outros propagam – de que Portugal “trouxe a civilização” aos territórios colonizados – ignoram as inúmeras formas de organização social e política dos povos africanos que viviam nestas terras.

Dizer que “a História é a História” não passa de um argumento de autoridade que recusa quaisquer discussões construtivas sobre o nosso passado coletivo e as suas várias dimensões. Um país que se debruça sobre o seu passado precisa de repensar e desconstruir os mitos imperiais, repetidos como verdades incontestáveis, e nos quais ainda assentam vários elementos da identidade nacional portuguesa.

O segundo argumento passa pela ideia de que flutuamos como indivíduos fora de contextos históricos e estruturas sociais – por outras palavras, de que o passado e os nossos antepassados em nada nos dizem respeito. Este argumento está plasmado no discurso da Iniciativa Liberal – “a História não é dívida” – e do sociólogo António Barreto, que escreve no PÚBLICO que “é mau princípio o de chorar culpas que não são nossas”. Pela mesma razão que não quer os louros de ter escrito Os Lusíadas ou de “descobrir o caminho para a Índia”, Barreto também se recusa a pedir desculpa pela escravatura e assassinatos no colonialismo português.

O primeiro grande problema neste argumento, que reduz a história do colonialismo a uma amálgama de “coisas boas e más” do passado que nada nos dizem respeito, é a quantidade de pessoas vivas que sofreram às mãos do aparelho colonial português. Desde serviçais que trabalharam forçadamente nas plantações de São Tomé e Príncipe até aos anos 70, aos combatentes dos movimentos de libertação africanos e jovens soldados do exército português, ainda há muita gente que está aqui para contar a sua história não se trata de “algo do passado” para elas.

O segundo problema é a lógica atomizante deste argumento, de que vivemos num presente absoluto em que nada mais somos que as nossas ações individuais. Não podia estar mais longe da realidade. As estruturas de poder herdadas e construídas pelo colonialismo continuam a ditar o racismo, a exclusão social, as hierarquias do conhecimento. O passado não é um artefacto perdido em tempos memoriais nos quais alguns escolhem mexer, mas, pelo contrário, forma uma estrutura de poder densa na qual todos estamos imersos.

O passado pertence a todas as pessoas e todas elas têm o dever de o olhar criticamente. Debater as reparações não significa remexer num passado longínquo e inócuo, como alguns o pretendem pintar, mas sobre como essa história dá forma ao nosso presente e, fundamentalmente, sobre as novas histórias que o futuro pode contar. Os argumentos usados pela direita parlamentar reproduzem mitos coloniais e impedem a possibilidade de conduzirmos uma reflexão coletiva sobre o nosso passado.

Contrariemos estas vozes. Porque não avançar, agora, com uma Comissão da Verdade do Colonialismo Português, abrindo um diálogo sério e abrangente entre Portugal e os antigos países colonizados sobre reparações financeiras, restituições de obras de arte, a escrita de uma história conjunta e pedidos de desculpa oficiais? Assistimos a processos semelhantes na Bélgica, Holanda, Alemanha e França. É a nossa vez: deixemos de ter medo do nosso passado.

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico

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