Ímpar
Comer (bem) em família e falar de liberdade
Bem-estar, famílias e relações, moda, celebridades... Um mundo que não é fútil.
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Se há coisa que me angustia é ver o frigorífico vazio. Com a saída dos filhos de casa, as prateleiras não têm quase nada, só as caixas dos legumes e da fruta servem o seu propósito. Depois há ovos, manteiga, queijos, iogurtes e pouco mais. Uma tristeza para quem foi criada nos anos 1980 e o frigorífico estava cheio, à pinha, de todo o tipo de iogurtes, carnes frias de todas as cores e feitios (os meus pais trouxeram da Alemanha o hábito de fazer ceias com pão escuro, comprado no Celeiro, junto à estação do Rossio, e galantine, mortadela, salame, fiambre de peito de peru, etc., etc.), mousses e flãs embalados, massas, lasanhas...
De repente, parecia que a minha mãe — cujas pizzas que fazia de raiz eram um sucesso na paróquia, numa altura em que as outras mães levavam frango comprado na churrasqueira —, e o meu pai — que fazia massa fresca e dumplings ao fim-de-semana — não sabiam cozinhar. As sopas e os caldos Knorr, as massas e pizzas congeladas, os raviólis e salsichas enlatadas. Era só produtos embalados (quando penso na quantidade de plástico que se deitava fora, ainda não havia reciclagem, aperta-se-me o coração). Tudo muito prático e muito rápido. Tudo péssimo para a nossa saúde, diz-nos Conceição Calhau, professora e investigadora que publicou um livro sobre alimentação saudável a que chamou, com alguma ironia, Deixemo-nos de Tretas: A ilusão da comida saudável. É que, hoje, ainda há frigoríficos e armários da cozinha assim, cheios de produtos processados e ultraprocessados.
Terá sido porque muitos passaram fome no Estado Novo? A verdade é que nos anos 1980, passámos a comer como se não houvesse amanhã, como se tivéssemos de provar tudo e provar a todos que estávamos bem na vida. Comportamento de novo-rico graças à adesão à então CEE, hoje União Europeia, e à quantidade de novos produtos que entraram nas nossas vidas, uma variedade imensa de cereais e achocolatados para o pequeno-almoço, uma imensidão de bolachas, bolos e tortas da Dancake, as bombokas, os bollycaos, o leite achocolatado e o ice-tea. "Açúcar às colheres", criticava o meu avô, enquanto comia o seu pãozinho integral com queijo e marmelada caseira, e bebia um chá. Morreu aos 94 anos.
O problema dos frigoríficos cheios é que, muitas vezes, os produtos ficam fora de validade. Por isso, Rachael Jackson propõe que antes de ir às compras, olhe com atenção para o que tem em casa e use, de maneira a evitar o desperdício. Com o passar dos anos e muita sensibilização à mistura, houve quem começasse a comer melhor, mas, diz Conceição Calhau ainda há muita gente que não só não sabe comer, como não sabe cozinhar e a fast-food e os ultraprocessados dominam as mesas de muitas famílias portuguesas. Para não falar das dietas da moda, que também têm os seus inconvenientes. Se comermos melhor, certamente o Serviço Nacional de Saúde terá menos que fazer, acredita.
Por isso, a proposta de Conceição Calhau é muito simples: comer produtos frescos, sazonais, fazer pratos que não tenham nomes complicados — em vez de um Bacalhau à Brás, uma caldeirada ou um ensopado, exemplifica —; nem que se perca muito tempo na sua confecção — demora mais fazer uma pescada cozida com batatas e brócolos, porque tudo tem tempos de cozedura distintos, em tachos diferentes, com a agravante de os nutrientes ficarem na água da cozedura; do que fazer um arroz com feijão, peixe e brócolos, tudo no mesmo tacho.
De preferência, que se cozinhe em família, um momento de convívio e de aprendizagem para os mais novos — a psicóloga Clementina Almeida chama a atenção para tantos comportamentos que temos, enquanto pais, que podem comprometer o futuro dos nossos filhos —; e que a última refeição do dia seja o mais cedo possível. A isto se resume uma alimentação saudável que nada mais é do que o regresso à dieta mediterrânica. No fundo, é voltar ao tempo dos nossos avós, em que se comia pouca carne, algum peixe, muitos produtos hortícolas, leguminosas e fruta. Para quê produtos embalados, vindos de longe, comprometendo o ambiente e o desenvolvimento de outros povos? Uma dieta e um estilo de vida mediterrânico: comer o nosso azeite e ervas aromáticas, caminhar e apanhar sol (não esqueça o protector solar).
Sair para a rua e fazer alguma coisa diferente pode ajudar a melhorar o nosso humor. "Tentar algo novo, e prestar realmente atenção às emoções positivas que isso pode provocar, pode ajudá-lo a descobrir, ou redescobrir, algo que adora em si e na sua vida", declara a actriz Tabitha Brown, que escreveu o livro I Did a New Thing: 30 Days to Living Free. A psicóloga Vera Ramalho defende que os cuidados de saúde física e psicológica são um direito humano fundamental. Sobre a saúde, sabemos como as dores das mulheres têm sido desvalorizadas, como há tantas que sofrem com, por exemplo, as dores menstruais — é possível ajustar o treino ao ciclo menstrual —, ou com as noites mal dormidas.
As mulheres são mais susceptíveis de sofrer de insónias e dizem ter uma qualidade de sono inferior. Os homens de sofrer de apneia do sono. Os ritmos circadianos das mulheres funcionam mais cedo do que os dos homens, e essas perturbações têm sido associadas a piores resultados em termos de saúde. Durante muito tempo, a investigação sobre o sono era feita só com homens e, por isso, desconheciam-se as diferenças de género, contextualiza Renske Lok, investigadora na Universidade de Stanford. Ao conhecerem-se essas diferenças, é possível adequar os tratamentos a cada género.
Também há diferenças naquilo que homens e mulheres vestem, e a indústria continua a sexualizar o corpo da mulher. O último exemplo chegou com a apresentação dos equipamentos da Nike para os Jogos Olímpicos de Verão, em Paris. Também a Adidas revelou os seus kits mas, talvez por ter sido mais tarde, evitou a polémica. A campeã americana de atletismo Lauren Fleshman perguntou por que razão eram tão diferentes os equipamentos da Nike, com os homens de calções e as mulheres de maiô decotado na zona pélvica. A marca norte-americana respondeu que todos os atletas têm liberdade de escolha, já que há meia centena de propostas. Escreve a publicitária brasileira Joanna Moura: "O que deve, sim, ser debatido é o recado que a Nike dá ao escolher justamente esse modelo (em detrimento dos outros 49 disponíveis) para ser mostrado ao mundo. Para mim, esse recado é claro: independentemente das nossas escolhas, o desejo que paira no ar é de que nossos corpos sigam à mostra, como património público."
Por um lado, é a sexualização do corpo das mulheres, por outro, é a liberdade de as mulheres vestirem o que quiserem. Numa semana em que celebramos a liberdade, no Museu do Tesouro Real há uma exposição de joalharia contemporânea que é uma homenagem a algumas mulheres que marcaram os últimos 50 anos, de Snu Abecassis a Manuela Eanes, passando por Sophia de Mello Breyner. É precisamente pegando nesta última que Ana Soares se debruça sobre a importância da liberdade. Em vez de dissecar um poema em sala de aula, a professora de Português do ensino secundário faz uma proposta de actividade para assinalar o 25 de Abril.
Uma proposta de uma autora de manuais escolares que pode ser usada em qualquer disciplina. E que é também uma sugestão que podemos adaptar para fazer em casa, à hora do jantar. Outras recomendações são as que Rita Pimenta vem dando, semanalmente, desde 30 de Março, de livros infantis sobre liberdade.
Atenção pais, falar sobre o 25 de Abril não faz de nós comunistas, como falar do 25 de Novembro não faz de nós populistas de direita. É preciso ensinarmos aos nossos filhos que o mundo não é a preto e branco e que aquela madrugado por que Sophia tanto esperava, era a mesma por que tantos portugueses ansiavam, é aquela que devemos celebrar com alegria e com a convicção de que não podemos voltar atrás. Escreve Ana Soares que os seus alunos concluíram que "é muito fácil só darmos por falta de algo quando o perdemos, e que a liberdade é frágil, precisa de ser cuidada; que devemos lutar para que mais pessoas possam viver assim; que a conquista da liberdade contribuiu para o desenvolvimento social e para a igualdade; que a liberdade dá a voz a minorias e que os jovens desvalorizam a liberdade porque a têm e não sabem o que é viver sem ela".
Boa semana!