O alojamento local foi o pior que nos podia ter acontecido

O lucro do proprietário do alojamento local não pode valer mais do que o descanso dos residentes.

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Expulsar o alojamento local não autorizado de prédios residenciais é uma guerra que vale a pena comprar Matilde Fieschi
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3h22. Quatro miúdos abrem a porta do prédio com estardalhaço, sobem as escadas velhas de madeira aos pulos, a falar como se fossem quatro da tarde e com música a tocar em alta voz no telemóvel. Mais uma noite estragada, uma de muitas.

Há uns anos, o novo proprietário do 2.º direito deste pequeno prédio na Penha de França (Lisboa) deixou à porta de cada “vizinho” uma caixa de bombons com um bilhete a anunciar-se. Já não me recordo do que lá estava escrito, mas comi os chocolates. O que ele não disse foi que nunca ninguém lhe ia pôr a vista em cima e que a casa que comprou ia ser um alojamento local (AL).

História resumida: acabou-se o sossego. O que até aquela altura era um prédio residencial de oito apartamentos que tinha de calmo o que tinha de velho (80 anos, a idade de alguns dos que lá vivem) passou a ser um sítio de onde alguns inquilinos já só querem sair.

Isto é de uma injustiça tremenda. O negócio do sr. X, que vive noutro país e que, soubemos mais tarde, tem outros apartamentos em Lisboa também em regime de alojamento local, não pode ter mais valor que o descanso dos que ali vivem.

Apesar da proibição imposta pelo Airbnb de não admitir “festas” em AL, sabemos por experiência que isso não é respeitado. São precisos os dedos de várias mãos para contar o número de vezes que fomos bater à porta depois da meia-noite a pedir silêncio, e talvez um par para o número de chamadas para a polícia.

Também aconteceu recebermos de resposta “eu faço o barulho que eu quiser”, deles e delas, sempre jovens turistas estrangeiros, que levam para o AL a festa que começou na rua. Pergunto-me se num hotel dariam tal resposta.

Além do ruído e da falta de respeito, o desgaste do edifício é notório. A porta da rua, que não é aberta com as mãos mas com o peso dos tróleis, está arruinada. O chão da escada, daqueles bonitos em madeira, está completamente riscado por essas malas com rodas que sobem e descem até ao último andar todas as semanas, duas ou mais vezes.

O dono do apartamento, o tal que nunca ninguém viu, não quer saber. Designou entretanto uma representante para gerir o negócio, uma das muitas pessoas que beneficia da economia criada pelo AL e que tem servido de argumentação dos proprietários e associações para a manutenção deste estado de coisas.

Outro é a renovação do património, as casas e prédios que ficaram arranjados e bonitos por causa do AL; os mesmos que esvaziaram as ruas e bairros da população autóctone e ajudaram a fazer disparar o preço das casas para um nível insuportável.

Devemos admitir todos os ângulos na discussão, que têm diferentes verdades. Mas tem de haver um acima de todos: a perturbação causada por um modelo que beneficia uns quantos e prejudica todos os outros é uma contradição que simplifica a resposta: não, os condóminos não querem ali o alojamento local. O lucro do sr. X não vale mais do que o nosso descanso. E essa é uma guerra que vale a pena comprar.

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