Naufrágios, milionários e a perversão da empatia

A comparação dos cinco milionários que morreram cedo demais com a tragédia humana da crise dos refugiados é pertinente porque nos confronta com a perversão da nossa empatia.

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“Ficou chocado?”, foi esta a primeira pergunta feita por Júlio Magalhães em directo para a CNN, como ponto de partida para reflexão sobre este assunto. Confesso que a pergunta até me surpreendeu porque já tantas vezes pensei, reflecti e escrevi sobre isto, que para mim este fenómeno é óbvio, infelizmente, mas também é óbvio que a sua resolução passa pela tomada de consciência e desconstrução do funcionamento das nossas sinapses cerebrais, neste mundo estranho que é a inteligência das emoções.

Há quem se revolte com o possível facto de que esta estória se tornou no assunto dominante nos media, por serem cinco milionários excêntricos dentro do mini-submarino. E como os que morrem no Mediterrâneo são pobres, tornamo-nos indiferentes. Há uma pitada de verdade nestas premissas, mas eu diria que o cerne da questão não é esse.

É a espectacularidade da estória que molda a nossa empatia. É o facto de ser inusitado e também de ter um fim, bom ou mau, à vista. A nossa empatia só entra quando nos relacionamos com os intervenientes, e de alguma forma sentimos que nos podia ter acontecido a nós. E ninguém se projecta ou sabe o que é, por exemplo, ser afegão ou afegã, fugir dos taliban por medo de morrer, arriscar a vida com os criminosos traficantes de humanos na Líbia, e mesmo sabendo que todos os anos morrem na ordem das 2000 pessoas afogadas no Mediterrâneo, tomam a decisão de se meterem nos barcos, com crianças, grávidas e idosos doentes. Como não nos imaginamos nesta estória, não a sentimos.

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Mohammad, um sobrevivente sírio do naufrágio ao largo da Grécia, chora ao encontrar-se com o irmão REUTERS/Stelios Misinas

Eu já vivi no Afeganistão numa zona muito complicada da guerra, conheci dezenas de afegãos com quem fiz boas amizades, mas eu também não sei o que é estar na pele deles, porque eu tenho um passaporte e um contrato com uma grande organização médica que me permite “carregar no botão vermelho” e regressar à segurança e ao conforto do meu país, quando eu quiser. Eles não têm essa opção. Mesmo estando lado a lado e de coração aberto, não sei o que é estar na pele deles. O melhor que eu posso fazer é ouvi-los, humanizar as suas estórias, e nunca esquecer a minha melhor interpretação de humanismo e humanitarismo: proporcionalidade. A nossa atenção e a nossa acção têm que ser proporcionais à dimensão dos desafios humanos.

A estória de Ryan, o menino que caiu num poço em Marrocos, e os 12 rapazes presos numa gruta do norte da Tailândia provam o meu ponto. São pessoas humildes e anónimas que fizeram parar o mundo, e conseguiram unir todos os esforços do planeta para que se salvassem as suas vidas. Sim, porque temos empatia, mas, acima de tudo, porque as estórias são espectaculares e concorrem com a Netflix.

Todos temos empatia, e a empatia é um sentimento poderosíssimo, mas como qualquer superpoder, por vezes é usada de uma forma perversa, mesmo sem nós nos darmos conta desse fenómeno.

A comparação dos cinco milionários que infelizmente morreram cedo demais com a tragédia humana da crise dos refugiados, tipificada num caso bem recente em que morreram cerca de 500 refugiados e migrantes, que ganha força a reboque da estória do mini-submarino, é pertinente porque nos confronta com a perversão da nossa empatia, e as assimetrias com que valorizamos as vidas humanas.

E eu ainda acrescento um ponto. Há muita gente a lutar, e muito bem, pela humanização do acolhimento aos refugiados, mas muito pouca gente a tentar alertar e a combater a questão de base: a resolução do motivo que os leva a fugir da sua amada pátria, em luta pela sobrevivência.

Proporcionalidade. As boas causas não se anulam, adicionam-se. Se não lutarmos pela solução in loco; dos conflitos armados, da fome, das alterações climáticas (esta, global, claro está), da falta de educação escolar… no fundo, a luta contra a desigualdade, vamos ter sempre tensões e migrações cruéis. Ajudar os refugiados, repito, é extremamente importante, mas, por si só, é como tentar esvaziar o oceano com uma colher de chá. Se não formos ao foco dos problemas com humanismo, empatia, proporcionalidade e consistência, nunca teremos uma humanidade digna do seu nome. Não há soluções simples para problemas complexos, mas há caminhos que têm que ser percorridos. Sentirmo-nos cidadãos do mundo é um deles.

Muitos gritam: “A culpa é dos media que não nos mostram, e dos políticos que não querem saber!”, e eu digo que não me parece que assim seja. Em democracia, os media e os políticos não são líderes, são seguidores das nossas vontades e das nossas escolhas. Cabe-nos a nós “explicar-lhes” o que queremos saber, e para onde queremos olhar com o nosso pensamento humano e político. Somos nós que escolhemos, e eles seguem-nos.

Alguns números para reflexão:

  • 5 pessoas morreram no mini-submarino.
  • 500 pessoas morreram recentemente no Mediterrâneo (100 eram crianças) em circunstâncias em que se estima terem morrido 25.000 pessoas desde 2014.
  • 2977 pessoas morreram no ataque às Torres Gémeas. Cerca de 1.000.000 a 2.000.000 morreram nas guerras de retaliação no Afeganistão e Iraque.
  • 5.000.000 de crianças morrem antes dos cinco anos, todos os anos, de causas na sua maioria facilmente tratáveis ou evitáveis.
  • 68.000.000 de crianças não têm a vacinação básica da infância que salva milhões de vidas, são 20% das crianças do mundo.
  • 800.000.000 de pessoas estão em risco de morrer à fome neste momento.
  • 4.000.000.000 de pessoas não têm acesso a cuidados de saúde de uma forma continuada, é metade da população mundial.

Desculpem tantos zeros, em vez da palavra milhões, mas ajuda-me a perceber que ali dentro de cada número está uma pessoa igual a mim.

São tudo números, e são tudo pessoas que têm os mesmos direitos a viver do que nós, se não formos xenófobos ou racistas. Para mim, ser português é uma questão administrativa. Ser, humano, tem que estar acima de qualquer outro rótulo identitário. Eu não sei se isto é ser de esquerda ou direita, porque considero a ciência e os direitos humanos inegociáveis, e coloco-os acima de tudo o resto como verdades universais e transversais a qualquer ponto do planeta.

A continuidade de qualquer tragédia humana faz com que nós nos afastemos, e faz com que deixe de ser notícia porque a nossa empatia aborrece-se com o assunto. Mas as emoções também se trabalham, também se treinam e também se ensinam.

Reconhecer o poder, mas também a perversão da nossa empatia, é o primeiro passo na luta por um mundo melhor. O mundo enquanto uma bolinha azul onde nós vivemos, e também o nosso mundo interior, que precisa do outro, para ser feliz.

As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel da Mota a favor dos Médicos sem Fronteiras

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