“Aprender a curar as feridas da injustiça”

O combate aos lastros de injustiça que persistem na educação exige um “novo contrato social”. Eis algumas possíveis chaves para abrir as portas de um outro futuro.

Precisamos de um novo contrato social para a educação, que possa reparar as injustiças enquanto transforma o futuro (UNESCO, 2022)

Num contexto em que as injustiças parecem crescer e a ameaça da exclusão se desenha mesmo sob o nosso olhar, precisamos de um vasto programa que possa “curar as feridas da injustiça”. Ensaiemos um roteiro breve organizado em duas sequências: i) qual é a gramática da injustiça, a sua genealogia, os seus sinais e evidências? ii) E como nos podemos organizar para o combater e resolver?

Basicamente, há quatro fontes estruturais de injustiça.

1. Desigualdade de acesso à educação e à escola.

Os cidadãos não têm as mesmas condições de acesso. Por efeito do encerramento de escolas de pequena dimensão, pelo efeito da ideologia de que o grande é que é melhor (e os mega-agrupamentos são, de um modo geral, um instrumento desta injustiça e desta pobreza pedagógica), pela distância casa-escola, pelo tempo perdido nos transportes, pela “pobreza” sociocultural dos contextos de vida, pela escassez de oferta educativa das escolas, pelo potencial défice de afetação de “recursos humanos” qualificados em “geografias” de baixa densidade… os cidadãos não têm direito de acesso às mesmas qualidades de ofertas educativas. Mesmo neste direito primeiro e basilar há um claro défice de igualdade.

2. Desigualdade nas condições de frequência.

Acedendo à educação, a frequência escolar também não é igual para todos. Porque as escolas são diferentes em termos de estruturas, equipamentos, disponibilidade de recursos “humanos”, condições de bem-estar; porque as “equipas educativas” têm diferentes graus de formação, implicação, compromisso e pertença; porque as culturas organizacionais e profissionais têm níveis distintos de mobilização e qualidade; porque as escolas são “sistemas debilmente articulados” e nem sempre as lideranças de topo e intermédias estão à altura da construção efetiva de comunidades de aprendizagem; porque as condições de exercício profissional são, por vezes, precárias, gerando sofrimento e solidão, o que eleva as possibilidades de desgaste e esgotamento; porque o modo de agrupar os alunos em turmas “fixas” e a organização dos horários discentes também condicionam as aprendizagens; porque a prática de um “profissionalismo solidário e interativo” ainda é tendencialmente escasso. Porque as medidas de promoção de sucesso escolar não são universais e eficazes no interior da mesma escola; porque as lideranças focalizadas na monitorização organizacional e sistemática do que cada aluno vai aprendendo nem sempre acontece, gerando um acumular de “atrasos”. Porque a “marcação sistemática de trabalhos para casa”, transferindo para o espaço doméstico a responsabilidade de consolidar e acrescentar aprendizagens que deveriam competir à escola, coloca os alunos dos contextos culturais desfavorecidos em clara desvantagem face aos seus pares. Por estas razões, é possível afirmar que “andar na mesma escola” não quer dizer que se tenha a mesma oportunidade de aprender.

3. Desigualdade nas condições de sucesso.

Acedendo e frequentando a escola nas circunstâncias descritas, o sucesso só pode ser desigual. É desigual a qualidade do sucesso, o aproveitamento, a aprendizagem. A atribuição das classificações, seguindo, em regra, a chamada “curva de Gauss” – a maioria dos alunos com classificações situadas no meio da escala, e poucos nos extremos inferior e superior – traduz essa desigualdade, legitimada pela “ideologia do mérito” que vem sendo sustentadamente contestada. A escola cumpre, deste modo, a função de selecionar e estratificar, excluindo (através da retenção, leia-se, reprovação) os que não atingem os patamares de aprendizagem considerados mínimos. O reforço dos exames de acesso ao ensino superior (e sua eliminação para finalizar o ensino secundário entrando com apenas 30% na classificação final) é mais um poderoso instrumento de incremento das desigualdades.

4. Desigualdade no usufruto dos bens educacionais.

Mesmo os alunos que conseguem concluir os percursos escolares e obter as credenciais de acesso (ao ensino superior ou ao mercado de trabalho) também se confrontam com situações de desigualdade no uso desses diplomas. Porque há todo um conjunto de mecanismos de acesso e recrutamento que ativam critérios de arbitrariedade na obtenção dos lugares de maior prestígio, melhor carreira e remuneração.

Estas são algumas das feridas da injustiça que um sistema “meritocrático” seria suposto evitar e sarar. Mas, como observamos, há largos lastros de injustiça que importa combater.

Este combate exige um “novo contrato social para educação” e que passa por a) uma sistemática política e prática de discriminação positiva, b) uma diferenciação pedagógica que ponha termo ao mito “de ensinar a todos como se todos fossem um”; c) uma inscrição territorial das escolas, criando redes ativas de suporte às aprendizagens; d) uma opção clara por uma avaliação ao serviço das aprendizagens e do desenvolvimento humano; e) uma formação das lideranças focadas nas aprendizagens de cada um dos alunos; f) criação de dispositivos flexíveis e diferenciados de suporte às aprendizagens (dar mais a quem tem menos); g) promoção de culturas de confiança e de colaboração, através, por exemplo, da indução das equipas educativas; h) reforço a comunicação intra-organizacional; i) incremento da relação escola-família.

Eis algumas possíveis chaves para abrir as portas de um outro futuro.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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