A guerra, a Polónia e os valores da UE
A abdicação de princípios em relação à Polónia por parte de Ursula von der Leyen é atentatória de valores fundamentais da União Europeia, e como tal é inadmissível, sob pena de os nossos próprios princípios claudicarem com o estado de guerra.
Desde 24 de Fevereiro passado, com a invasão da Ucrânia por Putin, a União Europeia entrou imprevistamente num novo capítulo da sua história, com um reforço sem precedentes da sua unidade manifestada no apoio à Ucrânia, nos sucessivos pacotes de sanções à Rússia, ou na decisão da Dinamarca, decidida em referendo com uma maioria de mais de 2/3, de finalmente aderir à Política Comum de Segurança e Defesa (uma decisão tão marcante quanto a da Suécia e da Finlândia de pedir a adesão à NATO, o que era inimaginável ainda há poucos meses) e a liderança efectiva exercida pela presidente da Comissão, Ursula von der Leyen.
Von der Leyen esteve longe de começar sob os melhores auspícios. Quando se pensava que, no sentido de uma maior democraticidade das instituições europeias, estava já consagrado o princípio do chamado Spitzenkandidat, isto é da apresentação por cada partido nas eleições europeias de um candidato a presidente da Comissão, com a indicação para o cargo do indigitado pelo partido mais votado, o Presidente francês, Emmanuel Macron, apresentou de surpresa ao Conselho Europeu o nome da ministra da Defesa alemã, que foi favoravelmente votado – “receio ter sido o primeiro e último Spitzenkandidat” lamentou-se o presidente cessante da Comissão, Jean-Claude Juncker.
No imbróglio que é sempre a atribuição das pastas aos comissários indicados pelos governos nacionais, Von der Leyen também não teve a necessária autoridade política para fazer face à chantagem da Hungria de Orbán para ficar com o Alargamento, quando a Hungria, tal como a Polónia, são países com os quais a UE tem um contencioso por falta de cumprimento dos princípios do Estado de Direito e da própria União.
E contudo Ursula von der Leyen revelou-se a líder certa no momento decisivo.
Eis senão quando ela própria acabar de dar um monumental e perigoso passo em falso ao aprovar o Plano de Recuperação e Resiliência da Polónia, quando o enorme esforço daquele país no acolhimento de qualquer coisa como cerca de 2 milhões de refugiados da Ucrânia, não pode fazer esquecer as razões de princípio do contencioso, a saber o ataque à independência do poder judicial, a recusa em cumprir as decisões do Tribunal Europeu de Justiça, e a atribuição às leis nacionais de supremacia sobre as europeias.
A decisão provocou um estrondo nas instituições europeias. Vários dos comissários, com destaque para o primeiro vice-presidente Frans Timmermans (o mais vocal), a também vice-presidente e comissária para os valores e transparência, Věra Jourová, e Didier Reynders, comissário da justiça, vieram a público declarar a discordância. Um tal conflito intra-Comissão é da ordem do inédito. Mas há mais: vários grupos parlamentares ameaçam apresentar moções de censura à presidente Von der Leyen.
Não se imagina pior momento para este conflito. Ursula von der Leyen dificilmente pode recuar na sua decisão de apoio à Polónia, enquanto a Comissão entrou em crise e poderá cair, por demissões ou pela aprovação de uma moção de censura, isto numa conjuntura de guerra exigindo, mais do que nunca a União.
Mas é certo que a abdicação de princípios em relação à Polónia por parte de Ursula von der Leyen é atentatória de valores fundamentais da União Europeia, e como tal é inadmissível, sob pena de os nossos próprios princípios claudicarem com o estado de guerra.