A responsabilidade (civil) do Estado pelos incêndios: quimera ou realidade?

Não parecerá difícil demonstrar que estamos perante factos determinantes do dever de indemnização.

A nossa comunicação social tem feito eco nos últimos dias da eventual responsabilização do Estado português pela chocante tragédia ocorrida em Pedrógão Grande, que vitimou 64 pessoas e provocou mais de 250 feridos, tendo deixado um rasto de destruição que infelizmente perdurará na nossa memória coletiva por muitos e muitos anos, e que muito dificilmente o tempo apagará.

Cada vez mais vozes se têm feito ouvir, clamando seja pela responsabilização dos diversos atores políticos envolvidos, seja pela responsabilização técnica ou administrativa das entidades competentes, designadamente em matéria de combate e prevenção de incêndios.

Ouvimos, por exemplo, declarações publicas de responsáveis políticos — posteriormente retificadas — de que o Estado falhou na missão de proteger os cidadãos, antes, durante e depois dos incêndios.

Ora, passados que estão alguns dias desde que ocorreu a tragédia que nos chocou a todos, parece seguro concluir que, ao contrário da mensagem que se fez passar ainda no eclodir do incêndio de Pedrógão Grande, nem tudo correu bem ao nível dos cuidados que o Estado deveria ter prestado, afigurando-se notório que existiram falhas, que terão agravado a sinistralidade de um fenómeno natural, já por si, de uma perigosidade anormal e extrema.

Pela informação que tem sido veiculada a conta-gotas, parece mesmo assistir-se a um autêntico jogo do empurra, designadamente entre a Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC) e a Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna, a quem cabe a gestão do Sistema Integrado de Redes de Emergência e Segurança de Portugal (SIRESP).

Não sendo propósito destas linhas dissecar a que serviços e/ou responsáveis caberá especificamente a responsabilidade pelo sucedido, bem como se essa responsabilidade deverá ser partilhada, e a montante da responsabilização politica que, em nosso entender, terá forçosamente de acontecer, mais cedo ou mais tarde, importa tentar aqui enquadrar juridicamente o tema, do ponto de vista do direito administrativo, e perceber até que ponto se poderá efetivar junto dos nossos tribunais a responsabilidade administrativa ou técnica, se quisermos, tão insistentemente reclamada pelos mais diversos quadrantes da nossa sociedade.

A responsabilidade civil dos poderes públicos, seja qual for a atividade ou função que prossigam, mormente a função administrativa, que é aquela que mais diretamente toca aos cidadãos, constitui um princípio estruturante de qualquer Estado de Direito, sendo, no reverso da medalha, um direito fundamental de todos.

Na verdade, a ideia de que o Estado-Administração deve ser responsabilizado pelos danos que, através de ações ou omissões, provoque nos cidadãos sujeitos à sua jurisdição, é hoje consensual no nosso ordenamento jurídico, encontrando desde logo guarida constitucional no artigo 22.º da Constituição da Republica Portuguesa (CRP), que estabelece o princípio geral de responsabilização patrimonial das entidades públicas, no plano extracontratual, constituindo-se, ao mesmo tempo, como uma norma atributiva de um direito geral à indemnização.

Esse princípio de responsabilização está atualmente concretizado, em sede de lei ordinária, nos artigos 7.º e 8.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, de cujo cotejo resulta que são pressupostos deste tipo de responsabilidade civil: 1) um facto, traduzido num comportamento ativo ou omissivo voluntário; 2) a ilicitude, traduzida na ofensa de direitos de terceiros ou disposições legais destinadas a proteger interesses alheios; 3) a culpa, que se traduz na imputação ético-jurídica ao autor do facto, ou num juízo de censura pela falta de diligência exigida a um funcionário ou agente típico; 4) a existência de um dano, ou seja, uma lesão de natureza patrimonial ou moral; 5) e, por fim, a existência de um nexo causal entre a conduta e o dano.

No essencial, a Lei n.º 67/2007 faz assim corresponder a responsabilidade civil dos agentes e poderes públicos ao conceito civilístico de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, consagrado no artigo 483.º n.º 1 do Código Civil.

Ora, fazendo uma brevíssima e perfuntória aproximação ao caso concreto, e a fazer fé no que se vem conhecendo, não parecerá difícil, no plano contencioso, fazer a demonstração de que estamos perante factos ilícitos, determinantes do dever de indemnização, na medida em que as autoridades competentes terão violado, em medida mais ou menos desculpável, o dever de agir que lhes assistia, incumprindo com deveres de vigilância em diversos domínios, como a proteção civil, a segurança rodoviária, a manutenção dos espaços arbóreos, etc.

Todavia, a invocação de que o Estado falhou com a sua obrigação de proteção dos cidadãos não basta, sendo ainda necessário que se faça um juízo de imputação aos titulares dos órgãos, funcionários e agentes envolvidos a título de culpa, e ainda que se verifique entre a omissão desses deveres e os danos ocorridos um nexo de causalidade.

Aparentemente, estaremos, no contexto até agora conhecido, perante uma situação de omissão de deveres de vigilância, que o artigo 10.º, n.º 3, da Lei n.º 67/2007 sujeita a presunção de culpa leve, por força da remissão genérica para a lei civil, o que, na prática, se traduz na inversão do ónus da prova, cabendo ao Estado provar que cumpriu com os seus deveres de vigilância, ou que os danos se teriam produzido, ainda que tais deveres tivessem sido escrupulosamente cumpridos.

Caso venha a ser suscitada, a situação não se afigurará de fácil resolução, sendo, porém, certo que a presunção legal operada pelo artigo 10.º da Lei n.º 67/2007 agrava indiscutivelmente a posição processual do Estado, na medida em que este, caso venha a ser demandado, terá de demonstrar que os diversos serviços públicos envolvidos na situação concreta agiram de forma eficaz e adequada, de modo a que não lhes seja possível imputar culposamente a ocorrência do acidente.

Dito de outra forma, recorrendo a um juízo de prognose, e do ponto de vista estritamente teórico, em eventuais ações de responsabilização do Estado pelos danos decorrentes do incêndio de Pedrógão Grande, a posição processual dos lesados parece bem mais fácil, na medida em que apenas lhes competirá provar a existência do dever de vigilância e do dano causado pelo actos ou omissões ilícitos ou antijurídicos do Estado; a este, por seu turno, caberá afastar tal presunção legal, demostrando que cumpriu com o seu dever de vigilância, ou que os danos seriam irreversíveis, mesmo se o cumprimento fosse uma realidade.

Resta, porém, uma interrogação: na ausência ou escassez de precedentes com as mesmas caraterísticas deste caso, como reagirão os nossos tribunais administrativos, principalmente o nosso tribunal administrativo de cúpula (o STA), reconhecidamente restritivo na apreciação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual dos poderes públicos? Esta é a pergunta do milhão de euros.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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