Oficina Arara: cartazes que gritam palavras nas paredes do Porto

Os seus emblemáticos cartazes em serigrafia já fazem parte da paisagem de algumas ruas do Porto. O colectivo de jovens artistas, fundado em 2010, é responsável pelo poster do premiado Balada de um Batráquio, de Leonor Teles.

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Paulo Pimenta Paulo Pimenta

O táxi é o número 77. Chegados ao destino, o taxímetro marca 5,55 euros. Em poucos minutos, duas capicuas disparadas, meras coincidências é verdade, mas que dão que pensar, sobretudo se tivermos em conta o motivo da reportagem: estamos em frente ao portão verde na Rua Anselmo Braancamp, no Porto, onde se abriga a Oficina Arara, a “arena de artes gráficas e outros movimentos inconclusivos” que também carrega um palíndromo no seu nome.

“Nada é por acaso, isso tem a ver com a Arara”, reage Pedro Nora, ladeado por Miguel Carneiro e Dayana Lucas. Os três são apenas seis braços do colectivo de jovens artistas, fundado em 2010 por Miguel, Dayana, Luís Silva, João Alves e Marta Baptista (os Von Calhau!), que se dedica a trabalhos em serigrafia — a turma actual inclui ainda Bruno Borges, Luís Silva e Daniela Duarte. Cá dentro, na oficina propriamente dita, está fresco. Há três anos que esta é a casa do grupo, que deixou a morada anterior em Campanhã para ocupar estas instalações na Cooperativa dos Pedreiros. E há tanto para observar que é difícil fixar o olhar.

Vemos tintas, materiais, papéis e mais papéis, livros e cartazes por todo o lado, alguns mais familiares, que reconhecemos das ruas do Porto, outros inéditos. Acima das nossas cabeças pendem uns quantos posters da Balada de um Batráquio, o filme de Leonor Teles, que reconhecemos dos festivais de cinema de Berlim e Hong Kong. Mas saíram daqui, daquela máquina que daqui a pouco já vai estar a cuspir serigrafias. Já lá vamos.

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Rua, o palco por excelência

Portanto, as tais capicuas têm a ver com a Arara, dizia Pedro. E não é só porque Arara, a palavra, se lê da mesma maneira da esquerda para a direita e da direita para a esquerda. O “nome em espelho” também remete para algo presente em todos os trabalhos, nomeadamente os cartazes, desde o início, evidencia Miguel. “Vai ao encontro de muitas coisas que criámos, como imagens que subvertem a ideia da percepção. Se calhar isso também é uma questão recorrente: fazer pensar uma imagem, fazer pensar no que é ver uma imagem.”

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Basta observar muitos dos trabalhos do colectivo que já fazem parte da paisagem de algumas ruas do Porto; cartazes em serigrafia que, por muito distintos que sejam, têm sempre algo que revela a sua origem. “Esse é o lado mágico”, diz Miguel. “Há sempre uma coerência qualquer que ninguém consegue explicar porque cada contexto é muito específico.” Se uns anunciam eventos, como concertos, exposições ou festas, outros só ostentam imagens. “Só”, como quem diz.

“Para cada imagem”, explica Miguel, “há uma história por trás e um contexto que provocou a imagem (...) Cada desenho é uma catarse individual ou colectiva no sentido que pensamos que pode transformar o mundo”. Um dos mais emblemáticos, o “Mamão”, desenhado pelo próprio Miguel no período pré-troika, mostrava uma mão engravatada com os dedos cruzados. E nada mais. O que será?, pensava-se. Está a fazer figas? É um cifrão? Era, conta o autor, uma referência ao “lado perverso das mãos que tentam controlar”, como dizendo “estamos a torcer por vocês enquanto estamos a torcer-vos”. No fim de contas, porém, não cabe aos artistas explicar a mensagem. “São os nossos tempos e nós reflectimos”, começa Pedro. “Mas uma das coisas que para nós é importante e constante, num sentido ‘não-propagandístico’, é criar imagens que dêem espaço para que a pessoa se projecte nelas e levante questões”, continua Miguel. “Que não digam: tens de pensar isto”, remata Dayana.

Mais tarde, algures entre a grande manifestação “Geração à Rasca” e situação da Escola da Fontinha, surge nas paredes da cidade uma “Boca” escancarada, que por vezes gritava palavras de ordem, pintadas por todos os que quiseram intervir nas serigrafias, ainda elas estavam a sair da máquina. A tese era simples: as pessoas tinham voltado à rua, voltavam a cantar, mas “faltavam canções novas” — e convinha lembrar que a boca era, e é, “um instrumento muito forte”.

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“Há claramente uma intervenção no espaço público”, resume Pedro, sobre este acto de espalhar palavras pelas ruas, que continua até hoje. É a histórica máxima: “Muros brancos, povo mudo”. Nem todos os cartazes acabam nas paredes da cidade, mas “praticamente todos têm essa vida”, diz o designer, o que os faz ser esquivos a fotografias. Porquê a rua? “Porque ainda é um espaço comum”, completa Miguel, para pouco tempo depois citar Sun Ra: “A rua não é só uma rua, é uma auto-estrada para o universo”. E no Porto, “há tantos edifícios abandonados, tanta parede abandonada”.

 150 sapos com bocas diferentes

Tudo isto começou há seis anos. “A Marta, dos Von Calhau!, dizia que no Verão de 2010 partilhámos uma seringa fria e ficamos todos infectados por este espírito da Arara”, recorda Miguel. E que quer isso dizer? “Queríamos encontrar um espaço comum em que pudéssemos misturar o trabalho com o lazer, criar uma indefinição entre ócio e o negócio.” Construir um estúdio que se “alimentasse” dos “desejos e delírios” de todos, mas que também lhes desse “de comer”. E, por outro lado, recuperar a serigrafia, técnica de impressão que “permitia criar múltiplos de uma imagem, difundi-la num espaço maior e por mais gente e de forma acessível”.

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O centro da actividade é então aquela máquina semi-automática, à volta da qual todos se concentram na altura da impressão — um “momento de criação” em si mesmo, sublinha Dayana, e não de “recriação”, aponta Miguel. Até porque “dentro da reprodução em série de imagens, a serigrafia é um meio que permite ter autonomia”, sublinha Pedro. Podem trocar cores, tipo de papel, tintas. “A qualquer momento pode haver variações, não é tanto a cópia”, evidencia Dayana. Foi o que aconteceu, explica, com os 150 cartazes da Balada de um Batráquio, resultado de um “processo de diálogo” de alguns meses com a realizadora, Leonor Teles, que fez a encomenda à Arara: “A versão original é com o fundo verde, mas há uma versão que tem o papel rosa e outras com fundo amarelo e branco. E depois da impressão, fizemos as bocas uma a uma, em spray, que são todas diferentes.” “Isso acontece em muitos cartazes”, aponta Pedro. “E não é um mero efeito”, sublinha Miguel, que concebeu o desenho com Dayana. É uma forma de citar o que vai dentro do filme, em que a realizadora parte sapos de louça colocados nas lojas para impedir a entrada de ciganos, mas “sem os partir logo no cartaz”.

A Arara divide-se entre estas dimensões: os cartazes de autor e as encomendas de clientes, como os já cúmplices Festival Matanças e o colectivo SOOPA. No entanto, relembra Pedro, não são “uma casa de cópias” — “Temos de ter sempre uma afinidade com as pessoas ou com os eventos”. Paralelamente, também têm apostado na organização de “workshops” (dia 18 de Junho há um no Contrabando), em exposições (há uma colectiva a decorrer em Santiago de Compostela) e na impressão publicações em serigrafia, de que são exemplo o jornal “Buraco”, cujo número 7 acabou de sair, e a BD “The Abolition of Work”, com desenhos do Bruno Borges a partir do texto de Bob Black. E cada vez participam mais em feiras de edição lá fora, até para estabelecer contacto com outros colectivos semelhantes, levando consigo cartazes e livros para vender (ainda agora estiveram no Gutter Fest, em Barcelona).

Os posters e publicações estão à venda em alguns locais do Porto, como a Matéria Prima, Inc, Gato Vadio, Utopia, Serralves, Maus Hábitos e Kate Skateshop (“É curioso perceber que a loja que nos vende mais cartazes é uma loja de skates”, evidencia Miguel), e na própria Oficina. O preço médio dos cartazes ronda os 20 euros, enquanto os livros vão dos 5 aos 15 euros. Também produzem t-shirts. Não é a procura de “riqueza” que os move (“Fazemos as coisas por prazer”, diz Pedro), mas também não se consideram “underground” (“É preciso dinheiro para pagar contas”, diz também Pedro). Acima de tudo, não querem ser “engajados ou catalogados” com nada. Daí os “movimentos inconclusivos” da biografia oficial; e, talvez, a escolha do próprio nome, Arara, onde descobriram que cabem tantas palavras como missões: “Ar”, um elemento “difícil de apreender”; “Rara”, adjectivo que designa algo que não é comum; “Rá”, o deus Sol do Antigo Egipto; “Ara”, um altar;  e “Arar”. Porque é preciso “cultivar a própria horta” para ter alimento, mas é particularmente importante “fertilizar o terreno” que está ao redor. 

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